segunda-feira, 30 de julho de 2018

"As Dez Figuras Negras", de Agatha Christie

   And then there were none. Esta expressão, bastante enraizada na cultura popular anglófona, tem a sua origem nesta que é uma das melhores e mais conhecidas histórias de mistério de Agatha Christie, e da própria literatura policial. Há muitos anos que alimentava em mim a vontade de ler esta história tão icónica e, por fim, consegui-o. E as minhas expetativas foram mais do que preenchidas, foram completamente abaladas. Esperava uma história muito boa, mas descobri um romance brilhantemente escrito, pensado e composto, merecedor da fama que detém. Este romance é, inclusive, um dos maiores best-sellers de sempre. 
   A premissa da história é igualmente famosa. Dez pessoas são convidadas a ficar uns dias numa ilha privada, a convite de um misterioso U. N. Owen. São convidados o juiz Wargrave, o dr. Armstrong, Vera Claythorne, Philip Lombard, o general Macarthur, Emily Brent, Anthony Marston, William Blore e Thomas e Ethel Rogers, todos por motivos distintos, mas de forma semelhante. Depois de ouvirem uma voz misteriosa que os acusa a cada um de ter cometido um assassínio, começam a ser assassinados, um a um, a seguir a letra de uma lengalenga infantil. Caberá aos sobreviventes determinar quem deles é o misterioso assassino, sendo que reviravolta atrás de reviravolta, a história segue por caminhos tortuosos até ao seu arrebatador final. 
   Agatha Christie foi um génio da literatura policial. Há histórias suas que fazem parte do imaginário de milhões de leitores, e esta é uma delas. Não só pelo romance, mas por todas as adaptações cinematográficas e paródias da história. A escrita é simples, sem grandes descrições, é objetiva e direta. No entanto, o que maravilha nesta história é o suspense criado com mestria pela autora que nos cola à leitura e nos agarra, sem termos intenções de alguma vez pousar o livro. É brilhante o seguimento do crime de acordo com a canção infantil, é brilhante a forma como nos sentimos compelidos a continuar. É brilhante a explicação final de como foram perpetrados os assassínios. É brilhante o desaparecimento de cada figurinha de loiça à medida que se vão desaparecendo os dez personagens. É brilhante, em suma. Mas acima de tudo, o que se destaca deste romance é o terror psicológico a que são submetidos os que vão sobrevivendo, prostrados pelo medo, mas acometidos pela culpa que os persegue devido aos seus crimes pessoais. É esse ponto que efetiva a mestria de Agatha Christie. As personagens que conhecemos e que acompanhamos são pessoas que conseguiram cometer os seus crimes à margem da lei, não podendo esta ser aplicada quanto àqueles. É com esta premissa que o assassino age, e as revelações que são feitas ao longo da história adensam e enriquecem a trama. É um romance magistralmente composto, sem dúvida alguma.
   Este livro é um dos obrigatórias da literatura policial. E é por isso que deve ser lido, quer por admiradores do género, quer por admiradores de outros géneros que não este. Trata-se de uma obra indispensável de leitura. 

Citações:
"Vera inclinou-separa a frente. - Curioso! Quantas são? Dez? - E logo exclamou: - Tem graça! Acho que são os dez meninos negros da lengalenga infantil. A lengalenga está encaixilhada no meu quartoe pendurada por cima da lareira."
"- Quero dizer - esclareceu Lombard - que assim se explica a Ilha do Negro. Há crimes pelos quais não se pode fazer pagar quem os perpetrou. É o caso dos Rogers. Outro caso é o do juiz Wargrave que cometeu o assassínio dele estritamente nos quadros da lei."
"E todos eles, subitamente, tinham menos a aparência de seres humanos. Assumiam formas mais animais. Como uma velha tartaruga cansada, o juiz Wargrave estava sentado, corcovado e imóvel, os olhos vivos e alerta. (...) Os sentidos de Philip Lombard pareciam ter-se intensificado e não diminuído. Os seus ouvidos reagiam ao mínimo som. (...) E sorria constantemente, os lábios arreganhando-se e mostrando dentes compridos e brancos."


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

sábado, 28 de julho de 2018

"Maresia e Fortuna", de Andreia Ferreira

   Este livro representa a incursão de Andreia Ferreira num género novo, o que tanto pode ser positivo como negativo. Neste caso, felizmente, foi positivo. E muito. A autora aventura-se num novo género sem medo e confiante, e isso nota-se, e bem, aquando da leitura. A piada de ler os livros da autora está no facto de conseguir o feito surpreendente, e, diga-se de passagem, não tão fácil, de conjugar a leitura rápida que é ler literatura light (termo aqui despegado da conotação negativa que se atribui a esse tipo de literatura), mas que de suave e sereno nada tem. 
   O jovem Eduardo vive na Apúlia juntamente com o seu irmão Simão e a sua mãe Adelaide, e leva uma vida serena no seu último verão como menor de idade. Não tem grandes preocupações que o ocupem e pacatamente leva a sua vida. Júlia, uma mulher bela com uma história conturbada, visita a pequena vila piscatória na companhia da sua sobrinha Vanessa, que julga que vem passar férias com a sua tia, quando esta tem os seus propósitos ocultos. É com o cruzamento destas duas histórias paralelas que a ação do livro se inicia. Quase como que in media res, são-nos apresentados os intervenientes principais desta história, para depois nos irem ser desvendados os pormenores. E é assim, de pormenor em pormenor, que vamos descobrindo as vidas destes personagens e as suas preocupações e inquietações. Eduardo preocupa-se que o seu relacionamento com Bianca esteja prestes a terminar e Júlia preocupa-se em desvendar algo no seu passado que acredita ser uma mentira que todos lhe contaram (é-nos apresentada a personalidade errática de Júlia). Assim é a primeira parte da história. A segunda parte é mais reveladora, sendo que irá escrutinar o passado de Júlia e a conexão desta com a família de Eduardo. E assim, de revelação em revelação, avançamos em catadupa a um trágico final. E, não se satisfazendo com o abalo que faz da história toda, a autora termina a história com um último retirar do tapete debaixo dos nossos pés. 
   A história, como disse, encaixa mais no conceito de literatura light. Mas, ao contrário do que este tipo de literatura normalmente nos apresenta, esta narrativa nada tem de segurança, felicidade, paz, sossego e tranquilidade. É uma história trágica, mas contada de uma forma sóbria, sem ser crua, e crua sem ser pobre. As suas descrições não são extensas e o melodramatismo que poderia resultar de uma história deste género não revela a sua face. A sua escrita conduz-nos, e nós deixamos que o faça, pelos sinuosos caminhos que vai desnovelando, pega-nos por uma mão e leva-nos, quase como que em corrida, pelas páginas do livro. A maior qualidade de Andreia Ferreira é a sua análise e construção da psique humana, sendo que os seus personagens estão muito bem construídos e não nos parecem falsos ou forçados. Não senti grande apego ao protagonista, Eduardo, principalmente à medida que avançava a história, mas a sua co-protagonista, Júlia, é a verdadeira personagem trágica. Não podemos deixar de sentir pena pela sua história, mesmo que condenemos as suas ações e os seus pensamentos. Simão é, efetivamente, o personagem com que mais simpatizei, uma boa pessoa a quem a tragédia decidiu derrear e subjugar, injustamente. Os nossos personagens nada mais são que os peões da Fortuna (aqui no sentido de destino) a que alude o título. Por falar no título, a Maresia que é também referenciada no título é omnipresente na narrativa, o Mar é uma presença constante ao longo da história que se desenrola alheia a si (ou talvez não). A Apúlia é uma das praias mais frequentadas pelos habitantes do Distrito de Braga, pelo que este livro possui um traço de familiaridade que nos embala, a nós que crescemos a frequentar aquela praia e a visitar os famosos moinhos apulienses. Conseguimos sentir o cheiro a maresia quando lemos as páginas deste livro. 
   Resta-me recomendar esta leitura. É acessível, sóbria, viciante e, acima de tudo, tem qualidade. Prevejo e desejo o crescimento de Andreia Ferreira, ocupando o seu lugar nas suas surpreendentes histórias de que tanto gostamos.

Citações:
"O poder da maresia, esse odor que trazia ao presente o passado nostálgico e memórias boas, memórias que a enlevavam dentro de si mesma, memórias que não se lembrava de terem ocorrido."
"Não era fã desses temas e mantinha-se cético quanto à purificação das almas pela tragédia. A existirem deuses, terão mais com que se entreter do que brincar com o destino dos homens."
"A tarde recusava-se a dar lugar ao crepúsculo, e foram os ponteiros do relógio a desmembrar a reunião de uma juventude sem problemas, enviando-os de volta aos seus lares."


Pontuação: 7.6/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 23 de julho de 2018

"2666", de Roberto Bolaño - Parte 3


A Parte de Archimboldi

   Por fim, chegamos à parte relativa ao esquivo escritor alemão que tanta paixão despertou nos críticos referidos na primeira parte deste monumental romance. Começamos por saber que o seu nome é Hans Reiter, nascido numa aldeia alemã no período entre guerras, filho de um ex-soldado prussiano e de uma mulher que apenas tinha um olho, chamados apenas por "o coxo" e "a zarolha". Também sabemos que tem uma irmã, de seu nome Lotte. Após uma pequena introdução à sua infância na sua pequena aldeia, acompanhamos a existência de Reiter na Segunda Guerra Mundial, enfileirado nas tropas alemãs. Terminando a guerra, Hans, após uma temporada num campo de prisioneiros, vai viver para Colónia com uma rapariga que conhecera ainda durante a guerra, Ingeborg. É então que Reiter adota o seu pseudónimo Benno von Archimboldi. Após o seu primeiro contacto com um editor de Hamburgo, o senhor Bubis, não só este consegue uma editora para todas as suas obras como reencontra alguém do seu passado, que é a esposa do editor. Após mais deambulações de Archimboldi, chegamos à vez da história de Lotte, que vivera a sua vida paralela à do irmão, até o reencontrar muitos anos depois, não sem antes ter casado e produzido um filho. Este jovem, fruto da irmã de Archimboldi, é a ligação entre a história anterior e esta. Entre todos estes momentos-chave, conhecemos variadíssimos personagens que compõem, mais do que a história de Archimboldi, a história da devastação que a guerra causa e do seu rescaldo. 
   Também nesta parte se nota o estilo particular do autor, com as descrições a roçar o inverosímil das personagens e do ambiente que as rodeia. O que mais nos marca nesta parte é as experiências diversas do personagem principal que, juntas, contribuem para a sua história pessoal e literária. As vivências que acompanhamos nesta parte do romance versam sobre a devastação e a reconstrução, e a impotência do ser humano perante isto tudo. Nota-se, mais do que nunca, o caráter inacabado da obra, nota-se demasiado, infelizmente, o caminho que ficou por percorrer, algo que não afeta, no entanto, a solidez do romance.
   E assim terminou a monumental obra que é 2666. Com o fecho do círculo que iniciou, sem se deixar abater pela sua imensidão. As partes que abriram alguma linha vieram todas dar ao ponto que queriam, e as que ficaram por atar decididamente foi devido à morte do autor e à inevitável interrupção que tal provoca. 

Citações:
"A quarta dimensão, dizia, é a riqueza absoluta dos sentidos e do Espírito (com maiúscula), é o olho (com maiúscula), isto é, o Olho, que se abre e anula os olhos, que comparados com o Olho são apenas uns pobres orifícios de lodo, fixos na contemplação ou na equação nascimento-aprendizagem-trabalho-morte, enquanto o Olho sobe pelo rio da filosofia, pelo rio da existência, pelo rio (rápido) do destino. (...) A quarta dimensão, dizia, só era exprimível através da música. Bach, Mozart, Beethoven."
"(...) quando é bem sabido, pensou Archimboldi, que a História, que é uma puta simples, não tem momentos determinantes, mas é sim uma proliferação de instantes, de brevidades que rivalizam entre si em monstruosidade."

Pontuação d' A Parte de Archimboldi: 1.9/2


Apreciação geral de 2666

   Que leitura! Sinto-me diferente após a leitura de uma obra tão extensa e exigente. Mas sinto-me satisfeito com a leitura da obra e, principalmente, da marca pessoal de 1025 páginas lidas. Foi tão extensa que tive de a fasear ao longo de um ano, com receio de me aborrecer e perder o interesse na monumental leitura que acabei de efetuar. Dito isto, pontos a considerar quanto a esta obra de Roberto Bolaño:
   - Por um lado, é uma pena que a obra esteja inacabada, pois deixa um sabor agridoce ver o evoluir da narração para terminar numa nota tão claramente incompleta. Por outro, talvez não fosse o que é se tivesse sido acabada. Nunca se sabe que caminhos teriam sido tomados em vez de outros que o foram efetivamente caso a história desembocasse num final diferente. 
   - Nunca saberemos, também, que caminho teria tomado Bolaño com o final deste monumento literário, mas sabemos, graças a uma nota editorial, que o autor tinha algo grande em mente, um final que, se tivesse sido concretizado, seria a catarse perfeita para uma obra tão extensa e exigente. 
   - Foi uma leitura de altos e baixos, umas vezes viciante, outras vezes aborrecida, marcas de uma obra ainda em construção, ainda em busca da sua estrutura elementar. 
   - Sem sombra de dúvida que é um enorme testemunho sobre a humanidade, naquilo que nos distingue uns dos outros, mas mais, talvez, naquilo que nos aproxima. Também é uma obra que versa sobre a loucura, o medo, a destruição e a reconstrução. 
   Uma obra prima, no fundo. E se merece ser lida... caberá aos curiosos (e corajosos) descobrir por si mesmos.

Citação final:
   "A resposta de Archimboldi surpreendeu Bubis. Nela dizia-lhe que Sísifo, uma vez morto, fugira do Inferno através de um estratagema de ordem legal. Antes que Zeus libertasse Tânato, e sabendo Sísifo que a primeira coisa que a morte faria seria ir à procura dele, pediu à sua mulher que não cumprisse os requisitos fúnebres estabelecidos. Assim, ao chegar aos Infernos, Hades censurou-o por isso e todas as potestades infernais clamaram, como é normal, aos céus ou na abóbada do Inferno e arrancaram cabelos e sentiram-se ofendidas. Sísifo, não obstante, disse que a culpa não era sua, mas sim da sua mulher e pediu, digamos, uma autorização penal para subir à terra e castigá-la.
   Hades pensou: a proposta de Sísifo era razoável e foi-lhe concedida a liberdade sob fiança, válida unicamente para três ou quatro jornadas, as suficientes para proceder à justa vingança e pôr em marcha, nem que fosse um pouco tarde, os requisitos fúnebres oficiais. Claro que Sísifo não esperou que lhe dissessem duas vezes e voltou à terra, onde viveu de forma feliz até ser muito velho, não era em vão que era o homem mais astuto da terra, e só regressou aos Infernos quando o seu corpo não deu mais de si. 
   Segundo alguns, o castigo da rocha só tinha uma finalidade: a de manter Sísifo ocupado e não permitir que a sua mente inventasse novas argúcias. Mas no dia em que Sísifo menos pensar vai-lhe acontecer alguma coisa e vai voltar a subir à terra, concluía Archimboldi na sua carta."


Pontuação de 2666: 7.5/10


Gonçalo Martins de Matos