sexta-feira, 22 de maio de 2020

"Azul-Turquesa", de Jacinto Lucas Pires

   Este romance de Jacinto Lucas Pires é daqueles livros que sempre vimos na estante dos nossos pais, e que chega o dia em que pensamos é desta e decidimos ler. 
   Azul-Turquesa segue os dias das vidas de José e Maria, individualmente até ao momento em que se cruzarão. José, professor de Matemática recentemente divorciado, passa muito do seu tempo no apartamento de um amigo ou simplesmente passeando pelas ruas de Lisboa, admirando as particularidades da vida de das vidas na capital. Maria escreve para uma revista, e pontua a sua parte da história com a demorada redação de uma peça sobre a mulher portuguesa e a sua rotina de passeio comercial no percurso casa-trabalho e trabalho-casa. Entre estas duas vidas inúmeras outras revelam pedaços de si nas páginas deste romance, sendo-nos oferecida uma recheada galeria de figurantes que podem reaparecer umas páginas à frente ou simplesmente uma vez. As vidas de José e Maria entrecruzam-se perto do final do romance, e as suas experiências peculiares darão origem a um final insólito e inesperado. 
   Jacinto Lucas Pires classificou este romance como sendo o equivalente a visualizar um filme numa sala de cinema. O estilo deste romance dá precisamente essa sensação. Ao longo de todo o romance assistimos a uma colagem de cenas que se sucedem, cada uma com a sua geografia e figurantes específicos. O tom do romance é caricato, pois algumas das situações que se colocam, mais a José do que a Maria, são tão insólitas quanto inesperadas. À parte da intriga principal, as vidas paralelas de José e Maria até ao seu inevitável encontro, as existências dos restantes figurantes tomam a rédea secundária da narração, alterando a paisagem com as suas afirmações e ações. São inúmeros os locais que estas figuras habitam, todos eles possuindo um mínimo descritivo que nos permite visualizar precisamente o tipo de cena que o narrador nos transmite. Não tenho muito mais para dizer, curiosamente. Não se passa neste romance muito mais para além do que foi escrito. No entanto, este romance não é de todo desinteressante ou mau, é muito bem estruturado e tem uma linguagem pragmática, fazendo eco do estilo cinematográfico do romance. É um romance de ver.
   Posso afirmar que esta é uma leitura ligeira que entreterá os seus leitores, que é no fundo o objetivo deste pequeno e interessante romance. 

Citações:
"Detrás do balcão um homem de cabelo comprido, loiro, levemente ondulado, com um bigode e uma pêra muito delicados, parecendo um pouco um mosqueteiro, talvez o Aramis, levanta a cebeça quando o rapaz entra."
"Fecha a porta de vidro da entrada Maria, e depois anda até à esquina. Ao ver um táxi, levanta o braço. O carro, porém, não pára. Antes pelo contrário, acelera, amarelo, para passar o semáforo, vermelho, e Maria olha para o meio da avenida. Junto do candeeiro que não é bem um tê nem bem um i grego, os dois rapazes da prosa, da poesia e dos equipamentos de futebol correm sem sair do lugar."
"E continua a sorrir no elevador. Depois abre a porta de vidro da entrada e sai. Do lado de cá da estrada, grita para o homem de de gabardina «eu chamo-me Maria», e ele, «eu chamo-me José». Ela então repete «José...», e ele diz »até calha bem», e os carros vão passando, passando."


Pontuação: 6.5/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 6 de maio de 2020

"Na América, disse Jonathan", de Gonçalo M. Tavares

   A obra de Gonçalo M. Tavares é tida como uma das mais originais da literatura portuguesa contemporânea, e o seu autor como uma das mais singulares vozes da literatura europeia. Se no passado custou a atingir, hoje em dia é com prazer e gosto de descoberta que enceto na leitura dos peculiares escritos de Gonçalo M. Tavares.
   Na América, disse Jonathan, parte de uma premissa muito interessante e promissora, denominada pelo narrador como "Projecto Kafka", que consiste em transportar um retrato de Kafka em viagem pelos Estados Unidos da América. Em formato de pensamento-diário, ouvimos Jonathan, através do narrador, a partilhar as suas ideias, pensamentos e histórias enquanto passamos pelos mais diversos locais nos Estados Unidos, da Califórnia até Cape Canaveral, na Flórida, no período de tempo correspondente entre os dias 30 de junho e 21 de agosto de 2016. 
   Na generalidade da obra de Gonçalo M. Tavares, o narrador e o escritor confundem-se num narrador-filósofo, que enceta numa narração quase técnica e científica dos factos constituintes da história, mas carregada de todo o pensamento, inquietções, ideias e reflexões do mesmo sobre os próprios factos narrados ou, ocasionalmente, sobre questões exteriores ao próprio texto, à própria obra. O subtítulo da obra em análise qualifica-a como "Diário-Ficção", e é precisamente neste molde que todo o livro se desenvolve. As reflexões e indagações de Jonathan confundem-se com as do narrador-filósofo, que enceta na função de interpretar e complementar as ideias que lemos. Como nas obras anteriores que li do autor, as ideias e reflexões do narrador-filósofo são interessantíssimas e pertinentes, e as histórias de Jonathan extremamente criativas. O mais interessante (para além do próprio texto) desta obra é que vem acompanhada das efetivas imagens que o narrador-autor capturou ao longo da sua viagem do retrato de Kafka nas mais diversas localizações geográficas dos Estados Unidos. As imagens podem complementar ou não os pensamentos descritos em cada página, mas apresentam a viagem do retrato de Kafka, viagem essa paralela à viagem do narrador e de Jonathan. Este complemento entre a imagem e o texto, como em outras obras de outros autores que recorrem à mesma técnica, atribuem um nível diferente à obra, não sendo meramente um diário, não sendo somente um conjunto de reflexões. As viagens paralelas do narrador e de Jonathan e de Kafka foram, verdadeiramente, inspiradoras. É muito conhecida a história de como José Saramago vaticinou a Gonçalo M. Tavares o Prémio Nobel. Com uma obra tão peculiar e universal, pode ser que a previsão do Nobel português venha a concretizar-se. 
   Portanto, logicamente, fica a instigação a que leiam, não só este, como outros livros, de Gonçalo M. Tavares.

Citações:
"Projecto Kafka - levar a sua imagem em viagem. Como se fosse um companheiro rectangular (...).
 Acreditar numa magia contemporânea a interferir na relação entre imagem e presença. Como bem nos mostra a tecnologia recente: imagem é presença. Antigo e demasiado contemporâneo: alterar a paisagem pela presença fantasma de Kafka."
"Que sinal?
 Uma construção ser abençoada pelo padre mas também pelos cientistas, etc.
 Que sinal fará o cientista à frente da construção a inaugurar? Em vez da cruz de Cristo, o sinal mais? O sinal menos? Vezes? O pi? 
(...)
 Há quem olhe para o sinal da cruz feito pela mão no ar e o confunda com o acto de medir mentalmente a altura e a largura da construção."
"De alguma maneira, o que tem acontecido é isto: anuncia-se uma nova tecnologia como em tempos se anunciou a chegada de Cristo. Também resolve problemas. E fala-se sempre da rapidez e da eficácia.
"Pensar num Cristo, diz Jonathan, rápido e eficaz. Profetas que anunciam a salvação que aí vem e que a comparam com anteriores salvações anunciadas utilizando critérios técnicos: esta nova salvação é mais rápida e comete menos erros."


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 4 de maio de 2020

"A Mulher que Correu Atrás do Vento", de João Tordo

   Nas publicações anteriores sobre a obra de João Tordo, preconizei uma mutação estilística que se notava no autor cada vez mais. Não li o livro anterior a este, mas neste consagra-se, enfim, a nova estética. 
   O romance começa precisamente por apresentar a história de Beatriz, estudante universitária em Lisboa, e de como, entre uma existência melancólica entre as aulas e o seu projeto de tradução de Ulisses, de James Joyce, e uma profunda inquietação que a assola desde a morte da sua mãe, esta acaba por conhecer e envolver-se com o autor de A História do Silêncio, Jaime Toledo, um homem introvertido e deprimido. Depois conhecemos Lisbeth, professora de piano na Baviera, e a sua frustração em não conseguir compor a sua obra, Das Auge des Zyklons, quando recebe um rapaz autista, Jost, como aluno, começando assim a sua fuga da Baviera e posterior expiação dos seus males. Por fim, conhecemos Lia, numa consulta terapêutica, a desnovelar o seu passado e a sua amargura com a sua mãe, a conhecida atriz Graça Boyard, por a ter abandonado à sua sorte quando era pequena, e a sua existência condicionada por esse momento crucial na sua vida. As vidas destas personagens, aparentemente separadas por um século, entrelaçam-se nas partes onde menos esperamos e é através dos passos melancólicos destas protagonistas que vamos, aos poucos, caminhando para o centro do ciclone, o espaço de calma lúgrube que aguarda todos por igual. 
   A voz inconfundível de João Tordo aliada a uma estética madura e perfeitamente dona de si são uma combinação poderosa. Este romance nunca se perde nas diversas encruzilhadas que abre, e o narrador guia-nos através da névoa que as povoa com uma mão firme mas delicada. O romance divide-se em oito partes, cada uma acrescentando dados novos às anteriores, todas conjugando-se para o final agridoce que encerra a narrativa. É um pormenor interessante, os ocasionais piscares de olho do autor a outros pedaços da sua obra. A estrutura do romance vai-se adaptando ao decorrer da narrativa, destacando-se o estilo textual dramático no sexto capítulo e a narração autodiegética no último capítulo. Como em obras anteriores, a inquietação do narrador é um sentimento dominante, desdobrando-se este nas personagens e nos lugares que povoam o romance. O talento simbolista do autor também é uma constante neste romance, sendo a inquietação, a melancolia e a solidão representadas por lugares como a herdade do Alentejo onde se refugia Lia, o "lugar perfeito" no meio dos bosques da Baviera ou o "centro dos ciclones", nome da peça de Lisbeth que melhor ilustra a solidão patente na história das protagonistas. Regressando aos capítulos referidos, estes podem ser considerados capítulos-chave de toda a obra, com os quais desbloqueamos a compreensão total dos eventos que nos são narrados. O estilo mutável e o monólogo final também podem ser uma reflexão diminuída da estrutura do Ulisses, de James Joyce, uma obra recorrente ao longo do texto, o que consiste numa outra compreensão a conferir ao romance no todo. Jost abandonado numa planície é o ponto de fuga do fresco que João Tordo nos oferece. É uma imagem recorrente e ilustrativa do turbilhão (ou antes, do ciclone) de emoções fortes e contraditórias que fervilha dentro das protagonistas. 
   É um grande romance de João Tordo e merece, sem dúvida, ser lido e apreciado. 

Citações:
"os rostos saudáveis dos miúdos, esquecidos de tudo, ignorantes do tempo, daquilo que o tempo nos dá e nos tira, do que o tempo cobra, de como ser humano é tão diferente de ser a humanidade, de como a humanidade por vezes nos salva de sermos humanos, porque ser humano pode dar cabo de nós, e da maneira como o tempo vai unindo as duas coisas. Às tantas, fartos de sermos humanos, passamos a ser humanidade, só humanidade, e por isso é lindo ver os velhinhos e as crianças dentro da piscina, porque somos nós também que estamos ali dentro."
"A alma de Beatriz vagueou suavemente debaixo da chuva que, após os primeiros minutos de borrasca, caía suavemente através do Universo, suavemente caindo, e de repente pensou que aquelas palavras não eram suas, e que a água no rosto e as roupas molhadas e o cabelo ensopado não tinham o mesmo poder encantatório das palavras de Joyce, tudo era miséria e desgraça."
"Caminhou pela herdade. O restolho abundava, a terra estava seca e grumenta. Passou ao lado de enormes rolos de feno, mais altos do que ela, cuja sombra a lua projetava à semelhança de naves espaciais despenhadas de galáxias distantes."


Pontuação: 9.7/10


Gonçalo Martins de Matos