segunda-feira, 4 de maio de 2020

"A Mulher que Correu Atrás do Vento", de João Tordo

   Nas publicações anteriores sobre a obra de João Tordo, preconizei uma mutação estilística que se notava no autor cada vez mais. Não li o livro anterior a este, mas neste consagra-se, enfim, a nova estética. 
   O romance começa precisamente por apresentar a história de Beatriz, estudante universitária em Lisboa, e de como, entre uma existência melancólica entre as aulas e o seu projeto de tradução de Ulisses, de James Joyce, e uma profunda inquietação que a assola desde a morte da sua mãe, esta acaba por conhecer e envolver-se com o autor de A História do Silêncio, Jaime Toledo, um homem introvertido e deprimido. Depois conhecemos Lisbeth, professora de piano na Baviera, e a sua frustração em não conseguir compor a sua obra, Das Auge des Zyklons, quando recebe um rapaz autista, Jost, como aluno, começando assim a sua fuga da Baviera e posterior expiação dos seus males. Por fim, conhecemos Lia, numa consulta terapêutica, a desnovelar o seu passado e a sua amargura com a sua mãe, a conhecida atriz Graça Boyard, por a ter abandonado à sua sorte quando era pequena, e a sua existência condicionada por esse momento crucial na sua vida. As vidas destas personagens, aparentemente separadas por um século, entrelaçam-se nas partes onde menos esperamos e é através dos passos melancólicos destas protagonistas que vamos, aos poucos, caminhando para o centro do ciclone, o espaço de calma lúgrube que aguarda todos por igual. 
   A voz inconfundível de João Tordo aliada a uma estética madura e perfeitamente dona de si são uma combinação poderosa. Este romance nunca se perde nas diversas encruzilhadas que abre, e o narrador guia-nos através da névoa que as povoa com uma mão firme mas delicada. O romance divide-se em oito partes, cada uma acrescentando dados novos às anteriores, todas conjugando-se para o final agridoce que encerra a narrativa. É um pormenor interessante, os ocasionais piscares de olho do autor a outros pedaços da sua obra. A estrutura do romance vai-se adaptando ao decorrer da narrativa, destacando-se o estilo textual dramático no sexto capítulo e a narração autodiegética no último capítulo. Como em obras anteriores, a inquietação do narrador é um sentimento dominante, desdobrando-se este nas personagens e nos lugares que povoam o romance. O talento simbolista do autor também é uma constante neste romance, sendo a inquietação, a melancolia e a solidão representadas por lugares como a herdade do Alentejo onde se refugia Lia, o "lugar perfeito" no meio dos bosques da Baviera ou o "centro dos ciclones", nome da peça de Lisbeth que melhor ilustra a solidão patente na história das protagonistas. Regressando aos capítulos referidos, estes podem ser considerados capítulos-chave de toda a obra, com os quais desbloqueamos a compreensão total dos eventos que nos são narrados. O estilo mutável e o monólogo final também podem ser uma reflexão diminuída da estrutura do Ulisses, de James Joyce, uma obra recorrente ao longo do texto, o que consiste numa outra compreensão a conferir ao romance no todo. Jost abandonado numa planície é o ponto de fuga do fresco que João Tordo nos oferece. É uma imagem recorrente e ilustrativa do turbilhão (ou antes, do ciclone) de emoções fortes e contraditórias que fervilha dentro das protagonistas. 
   É um grande romance de João Tordo e merece, sem dúvida, ser lido e apreciado. 

Citações:
"os rostos saudáveis dos miúdos, esquecidos de tudo, ignorantes do tempo, daquilo que o tempo nos dá e nos tira, do que o tempo cobra, de como ser humano é tão diferente de ser a humanidade, de como a humanidade por vezes nos salva de sermos humanos, porque ser humano pode dar cabo de nós, e da maneira como o tempo vai unindo as duas coisas. Às tantas, fartos de sermos humanos, passamos a ser humanidade, só humanidade, e por isso é lindo ver os velhinhos e as crianças dentro da piscina, porque somos nós também que estamos ali dentro."
"A alma de Beatriz vagueou suavemente debaixo da chuva que, após os primeiros minutos de borrasca, caía suavemente através do Universo, suavemente caindo, e de repente pensou que aquelas palavras não eram suas, e que a água no rosto e as roupas molhadas e o cabelo ensopado não tinham o mesmo poder encantatório das palavras de Joyce, tudo era miséria e desgraça."
"Caminhou pela herdade. O restolho abundava, a terra estava seca e grumenta. Passou ao lado de enormes rolos de feno, mais altos do que ela, cuja sombra a lua projetava à semelhança de naves espaciais despenhadas de galáxias distantes."


Pontuação: 9.7/10


Gonçalo Martins de Matos

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