quarta-feira, 6 de maio de 2020

"Na América, disse Jonathan", de Gonçalo M. Tavares

   A obra de Gonçalo M. Tavares é tida como uma das mais originais da literatura portuguesa contemporânea, e o seu autor como uma das mais singulares vozes da literatura europeia. Se no passado custou a atingir, hoje em dia é com prazer e gosto de descoberta que enceto na leitura dos peculiares escritos de Gonçalo M. Tavares.
   Na América, disse Jonathan, parte de uma premissa muito interessante e promissora, denominada pelo narrador como "Projecto Kafka", que consiste em transportar um retrato de Kafka em viagem pelos Estados Unidos da América. Em formato de pensamento-diário, ouvimos Jonathan, através do narrador, a partilhar as suas ideias, pensamentos e histórias enquanto passamos pelos mais diversos locais nos Estados Unidos, da Califórnia até Cape Canaveral, na Flórida, no período de tempo correspondente entre os dias 30 de junho e 21 de agosto de 2016. 
   Na generalidade da obra de Gonçalo M. Tavares, o narrador e o escritor confundem-se num narrador-filósofo, que enceta numa narração quase técnica e científica dos factos constituintes da história, mas carregada de todo o pensamento, inquietções, ideias e reflexões do mesmo sobre os próprios factos narrados ou, ocasionalmente, sobre questões exteriores ao próprio texto, à própria obra. O subtítulo da obra em análise qualifica-a como "Diário-Ficção", e é precisamente neste molde que todo o livro se desenvolve. As reflexões e indagações de Jonathan confundem-se com as do narrador-filósofo, que enceta na função de interpretar e complementar as ideias que lemos. Como nas obras anteriores que li do autor, as ideias e reflexões do narrador-filósofo são interessantíssimas e pertinentes, e as histórias de Jonathan extremamente criativas. O mais interessante (para além do próprio texto) desta obra é que vem acompanhada das efetivas imagens que o narrador-autor capturou ao longo da sua viagem do retrato de Kafka nas mais diversas localizações geográficas dos Estados Unidos. As imagens podem complementar ou não os pensamentos descritos em cada página, mas apresentam a viagem do retrato de Kafka, viagem essa paralela à viagem do narrador e de Jonathan. Este complemento entre a imagem e o texto, como em outras obras de outros autores que recorrem à mesma técnica, atribuem um nível diferente à obra, não sendo meramente um diário, não sendo somente um conjunto de reflexões. As viagens paralelas do narrador e de Jonathan e de Kafka foram, verdadeiramente, inspiradoras. É muito conhecida a história de como José Saramago vaticinou a Gonçalo M. Tavares o Prémio Nobel. Com uma obra tão peculiar e universal, pode ser que a previsão do Nobel português venha a concretizar-se. 
   Portanto, logicamente, fica a instigação a que leiam, não só este, como outros livros, de Gonçalo M. Tavares.

Citações:
"Projecto Kafka - levar a sua imagem em viagem. Como se fosse um companheiro rectangular (...).
 Acreditar numa magia contemporânea a interferir na relação entre imagem e presença. Como bem nos mostra a tecnologia recente: imagem é presença. Antigo e demasiado contemporâneo: alterar a paisagem pela presença fantasma de Kafka."
"Que sinal?
 Uma construção ser abençoada pelo padre mas também pelos cientistas, etc.
 Que sinal fará o cientista à frente da construção a inaugurar? Em vez da cruz de Cristo, o sinal mais? O sinal menos? Vezes? O pi? 
(...)
 Há quem olhe para o sinal da cruz feito pela mão no ar e o confunda com o acto de medir mentalmente a altura e a largura da construção."
"De alguma maneira, o que tem acontecido é isto: anuncia-se uma nova tecnologia como em tempos se anunciou a chegada de Cristo. Também resolve problemas. E fala-se sempre da rapidez e da eficácia.
"Pensar num Cristo, diz Jonathan, rápido e eficaz. Profetas que anunciam a salvação que aí vem e que a comparam com anteriores salvações anunciadas utilizando critérios técnicos: esta nova salvação é mais rápida e comete menos erros."


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

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