quinta-feira, 30 de junho de 2022

"Pão de Açúcar", de Afonso Reis Cabral

   Afonso Reis Cabral é o mais recente detentor do Prémio José Saramago, tendo-o recebido em 2019. A leitura de um dos "herdeiros de Saramago" tem comigo sempre uma sensação de calma que antecede a tempestade. E que tempestade se preparava.
   Rafael, Samuel e Nélson são três amigos, acolhidos pela Oficina São José, que gostam de visitar zonas abandonadas da cidade do Porto em conjunto. Samuel é muito diferente dos seus dois amigos, pois é dotado da sensibilidade do artista, tendo muito jeito para o desenho. Rafael e Nélson, por seu lado, são dois estereótipos de pré-adolescente oriundo de famílias problemáticas, sem qualquer característica que os distinga dos demais habitantes da instituição que os acolhe. Um dia, em que Rafael procurava por uma nova "zona suja" (o termo que os três usavam para descrever os sítios que visitavam) quando decidiu aventurar-se pelas obras inacabadas de um edifício que serviria para acolher um mercado "Pão de Açúcar". É na cave deste projeto de edifício que Rafael trava conhecimento com Gi, uma mulher transexual a morar num barraco improvisado. Durante alguns dias, Rafael visitou Gi, levando-lhe alimento, enquanto tratava da recuperação de uma bicicleta que encontrara. Certo dia, decide apresentar Gi aos seus amigos, que passam a acompanhá-lo no cuidado com a sem-abrigo. É quando o mais delinquente da Oficina, Fábio, descobre que se precipitam os acontecimentos que se seguiram e que foram alvo de notícias e reportagens que abalaram o país nos meses subsequentes.
  A base do romance é uma série de acontecimentos reais: Gisberta, uma transexual brasileira que vivia nas obras de um prédio inacabado no Porto, foi encontrada morta na cave desse prédio, depois de vários dias a ser espancada e torturada por 13 jovens. Estes acontecimentos foram acompanhados pelos meios de comunicação portugueses, tendo os rapazes sido submetidos a medidas tutelares demasiado benevolentes para a gravidade do caso. Propositadamente, o protagonista não gera empatia. Rafael é um miúdo como tantos outros oriundos de famílias disfuncionais: agressivo, tóxico, bruto. Nem a empatia que acaba por criar com Gisberta o redime. Afonso Reis Cabral é brilhante na forma como consegue manter alguma ambiguidade na caracterização de Rafael, gerando sempre a possibilidade de alguma empatia, que tanto pode funcionar como, no meu caso, não funcionar. Samuel representa a inocência infantil, pelo que é dos personagens que gera mais empatia: um rapaz preso a um universo de idiotas abrutalhados que serão os criminosos do futuro. Os restantes rapazes da Oficina servem de lembrança que o mundo que estes jovens delinquentes conhecem é um mundo de violência e miséria, o que gera também algum desconforto, mas que mais uma vez resulta do talento do autor. Neste romance, o autor mistura facto com ficção para criar o meio de uma história ainda hoje mal contada, apenas com princípio e fim. A linguagem é marcadamente oral, uma vez que o romance é narrado por Rafael, sendo utilizadas frases simples e diretas, quase cruas, com recurso ao calão portuense típico, não sem algumas imagens e pensamentos mais literários. Ao romance acrescem ainda duas fotografias do local principal da ação e alguns recortes de imprensa selecionados pelo autor. 
   Trata-se, sem dúvida, de um romance de difícil digestão, mas de uma leitura viciante e fluída. 
 
"O meu quotidiano era habitado por gajos como o Fábio, que batem, e como o Leandro e o Grilo, que obedecem, os que abusam e os que se deixam abusar, mas também por amigos que falavam sem freio como o Nélson e por amigos como o Samuel, cujo silêncio dizia mais. Tudo único, nosso, mas repetido por centenas de outros lugares [...]. E isso acalmava como ver de fora, porque não éramos únicos: só peças no mecanismo geral das coisas."
 
"As vizinhas esfregavam as peças de roupa nos tanques com tal violência que eu sentia pena do sabão macaco assim mexido, assim tratado com vingança. O excesso de limpeza até parecia falta de higiene, impregnava-nos o cheiro a pobre."
 
"No último lanço já se ouvia melhor o ruído da cidade, os carros a apitar, os autocarros a travar com estampido hidráulico, as gruas a girar, mas também o vento no cimento e os estorninhos em voo rumo ao Douro."
 
 
Pontuação: 7.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sábado, 11 de junho de 2022

"A Sociedade dos Sonhadores Involuntários", de José Eduardo Agualusa

   A sinopse na contracapa deste romance de José Eduardo Agualusa está escrita de uma forma tão promissora que dá logo asas à imaginação do potencial leitor. Infelizmente, a história deste romance não assume os contornos que a minha imaginação logo criou. Felizmente, contudo, não deixa de ser uma história maravilhosa. 
   Daniel Benchimol é um jornalista angolano da oposição, divorciado de Lucrécia (filha de um homem do regime angolano), e tem a particularidade de sonhar com lugares e pessoas que não conhece (ou ainda não conheceu). É um habitual frequentador do Hotel Arco-Íris, de Hossi Apolónio Kaley, antigo guerrilheiro que afirma que morreu duas vezes, para além de, aparentemente, conseguir participar nos sonhos dos outros. Quando encontra uma câmara fotográfica, no rolo da qual encontra uma mulher que lhe tem aparecido em sonhos, Daniel viaja até à África do Sul para conhecer Moira Fernandes, artista plástica moçambicana que encena os seus próprios sonhos. Enquanto Daniel e Moira passeavam pela montanha, travaram conhecimento com Hélio de Castro, neurocientista brasileiro que afirma ter inventado uma máquina de filmar sonhos. Entretanto, um grupo de revolucionários, encabeçado pela filha de Daniel e de Lucrécia, Karinguiri, e entre os quais se encontra o sobrinho de Hossi, são presos por se manifestarem contra o presidente angolano. À medida que as histórias dos quatro sonhadores se vão cruzando e desenvolvendo, a história da greve de fome dos jovens revolucionários, e dos seus efeitos nacionais e internacionais, acontece simultaneamente. 
   O romance é narrado por Daniel Benchimol, com a exceção de alguns capítulos, nos quais temos acesso a passagens dos diários de Hossi e a alguma correspondência de Moira. Um dos aspetos temáticos mais interessantes deste romance é a polissemia da palavra sonho: o sonho corresponde tanto à fantasia imaginada durante o sono, como ao objetivo, à finalidade. Os sonhadores a que alude o título dividem-se entre estas duas categorias: há os sonhadores na cabeça, como Benchimol, Hossi e Moira, e os sonhadores de uma sociedade livre e justa, como os jovens revolucionários, Armando Carlos - um ator, amigo de Benchimol - e outros breves personagens. A batalha entre o realismo e o conformismo, por um lado, e o sonho e a esperança, por outro, atravessa as páginas desta narrativa. O realismo é representado por Daniel e Hossi no início do romance, do conformismo que acaba por se instalar em almas lutadoras cansadas. Mas a chama do sonho que Karinguiri e os revolucionários corporizam abala as raízes do realismo, e levam a que todos possam sonhar. Aliás, tentando não fazer uma grande revelação do enredo, o sonho - na sua polissemia - é o que acaba por dominar no final. O romance tem um tom satírico subjacente, e algumas das situações mais inusitadas ou dos alívios cómicos revelam precisamente o tom humorístico da narrativa. Como sempre que lemos romances de autores de expressão lusófona, o romance encontra-se pontilhado também de expressões e vocábulos específicos às línguas das respetivas regiões, o que adiciona sempre à potencialidade da escrita.
   Trata-se de um belo romance sobre o poder do sonho na vida de todos nós. 

Citações:

"A figueira contorcia-se na tarde como se o vento lhe fizesse cócegas. Gostei logo dela. A árvore gargalhava debruçada sobre o muro. Um corvo, ou talvez não fosse um corvo, era, em todo o caso, uma ave maciça e escura como um corvo, caiu de entre as folhas e olhou para mim como um corvo olharia a curiosa figura de um homem - depois ladrou."

"Lá fora chovia, como há de chover no final dos tempos. Uma água pesada castigava o asfalto, espancava os carros e as vidraças. O ruído da chuva a cair sobrepunha-se ao roncar dos geradores, às buzinas furiosas dos candongueiros, aos gritos das zunqueiras, abrigadas sobre os amplos vãos dos prédios."

"Os antigos gregos, como os chineses e os hebreus, não tinham uma palavra destinada a designar a cor azul. Para todos eles o mar era verde, acastanhado ou cor de vinho. Eventualmente, negro. [...] Também o céu não era azul. Poetas descreviam-no como rosado, ao amanhecer; incendiado, ao lusco-fusco; leitoso, nas melancólicas manhãs de inverno."


Pontuação: 9.3/10


Gonçalo Martins de Matos