sábado, 11 de junho de 2022

"A Sociedade dos Sonhadores Involuntários", de José Eduardo Agualusa

   A sinopse na contracapa deste romance de José Eduardo Agualusa está escrita de uma forma tão promissora que dá logo asas à imaginação do potencial leitor. Infelizmente, a história deste romance não assume os contornos que a minha imaginação logo criou. Felizmente, contudo, não deixa de ser uma história maravilhosa. 
   Daniel Benchimol é um jornalista angolano da oposição, divorciado de Lucrécia (filha de um homem do regime angolano), e tem a particularidade de sonhar com lugares e pessoas que não conhece (ou ainda não conheceu). É um habitual frequentador do Hotel Arco-Íris, de Hossi Apolónio Kaley, antigo guerrilheiro que afirma que morreu duas vezes, para além de, aparentemente, conseguir participar nos sonhos dos outros. Quando encontra uma câmara fotográfica, no rolo da qual encontra uma mulher que lhe tem aparecido em sonhos, Daniel viaja até à África do Sul para conhecer Moira Fernandes, artista plástica moçambicana que encena os seus próprios sonhos. Enquanto Daniel e Moira passeavam pela montanha, travaram conhecimento com Hélio de Castro, neurocientista brasileiro que afirma ter inventado uma máquina de filmar sonhos. Entretanto, um grupo de revolucionários, encabeçado pela filha de Daniel e de Lucrécia, Karinguiri, e entre os quais se encontra o sobrinho de Hossi, são presos por se manifestarem contra o presidente angolano. À medida que as histórias dos quatro sonhadores se vão cruzando e desenvolvendo, a história da greve de fome dos jovens revolucionários, e dos seus efeitos nacionais e internacionais, acontece simultaneamente. 
   O romance é narrado por Daniel Benchimol, com a exceção de alguns capítulos, nos quais temos acesso a passagens dos diários de Hossi e a alguma correspondência de Moira. Um dos aspetos temáticos mais interessantes deste romance é a polissemia da palavra sonho: o sonho corresponde tanto à fantasia imaginada durante o sono, como ao objetivo, à finalidade. Os sonhadores a que alude o título dividem-se entre estas duas categorias: há os sonhadores na cabeça, como Benchimol, Hossi e Moira, e os sonhadores de uma sociedade livre e justa, como os jovens revolucionários, Armando Carlos - um ator, amigo de Benchimol - e outros breves personagens. A batalha entre o realismo e o conformismo, por um lado, e o sonho e a esperança, por outro, atravessa as páginas desta narrativa. O realismo é representado por Daniel e Hossi no início do romance, do conformismo que acaba por se instalar em almas lutadoras cansadas. Mas a chama do sonho que Karinguiri e os revolucionários corporizam abala as raízes do realismo, e levam a que todos possam sonhar. Aliás, tentando não fazer uma grande revelação do enredo, o sonho - na sua polissemia - é o que acaba por dominar no final. O romance tem um tom satírico subjacente, e algumas das situações mais inusitadas ou dos alívios cómicos revelam precisamente o tom humorístico da narrativa. Como sempre que lemos romances de autores de expressão lusófona, o romance encontra-se pontilhado também de expressões e vocábulos específicos às línguas das respetivas regiões, o que adiciona sempre à potencialidade da escrita.
   Trata-se de um belo romance sobre o poder do sonho na vida de todos nós. 

Citações:

"A figueira contorcia-se na tarde como se o vento lhe fizesse cócegas. Gostei logo dela. A árvore gargalhava debruçada sobre o muro. Um corvo, ou talvez não fosse um corvo, era, em todo o caso, uma ave maciça e escura como um corvo, caiu de entre as folhas e olhou para mim como um corvo olharia a curiosa figura de um homem - depois ladrou."

"Lá fora chovia, como há de chover no final dos tempos. Uma água pesada castigava o asfalto, espancava os carros e as vidraças. O ruído da chuva a cair sobrepunha-se ao roncar dos geradores, às buzinas furiosas dos candongueiros, aos gritos das zunqueiras, abrigadas sobre os amplos vãos dos prédios."

"Os antigos gregos, como os chineses e os hebreus, não tinham uma palavra destinada a designar a cor azul. Para todos eles o mar era verde, acastanhado ou cor de vinho. Eventualmente, negro. [...] Também o céu não era azul. Poetas descreviam-no como rosado, ao amanhecer; incendiado, ao lusco-fusco; leitoso, nas melancólicas manhãs de inverno."


Pontuação: 9.3/10


Gonçalo Martins de Matos

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