terça-feira, 29 de março de 2022

"O Bom Inverno", de João Tordo

   O Bom Inverno não se trata de uma leitura nova, já o tinha lido há muitos anos, antes ainda de escrever neste blogue. Este ano, surgiu uma vontade de reler esta obra de João Tordo, que se tinha revelado já na altura como uma descoberta literária. Anos depois, é com felicidade que nos parecem intocadas as nossas primeiras impressões. 
   Somos de início apresentados ao narrador, que vive frustrado e em auto-reclusão após a publicação do seu terceiro livro, refém da sensação de fecho de ciclo trazida por este. Não contribui para o seu estado mental o facto de, ao cair das escadas, este ter ficcionado um problema qualquer na perna que o impedia de caminhar sem o apoio de uma bengala, apesar de os médicos lhe dizerem que se tratava de um delírio seu. É num estado de pessimismo e de amargura que o narrador é confrontado com um convite para um evento literário em Budapeste, cidade onde conhece Vincenzo, escritor, Olivia, sua namorada, e Nina, agente de um outro escritor, McGill. É lá que o narrador se deixa levar pela fome de aventura de Vincezo, que aceita o convite de acompanhar Nina e McGill à casa de um misterioso e excêntrico produtor de cinema, Don Metzger, um sítio isolado num bosque ermo de Sabaudia, em Itália. Lá, os quatro são apresentados a personagens tão peculiares quanto mirabolantes, como uma atriz conhecida chamada Elsa Gorski ou um catalão imponente chamado Bosco. Todos os personagens presentes na casa são surpreendidos pela morte de Don Metzger, o que leva Bosco a sequestrá-los na casa de Don até o culpado se revelar. É numa espiral descendente em catadupa para o abismo que o resto da narrativa se processa, com revelações sempre cada vez mais surpreendentes que as anteriores, até a um final simultaneamente trágico e aliviado, verdadeiramente melancólico como é apanágio deste grande autor português. 
   O narrador é autodiegético e, como em grande parte dos romances de João Tordo, nota-se a autoprojeção do autor no seu narrador. O facto curioso deste romance é que se trata do primeiro depois de o autor ter recebido o Prémio Literário José Saramago, que estabeleceu de facto uma fasquia psicológica a João Tordo, que já descreveu como se sentiu refém das expectativas, entrando numa espiral muito próxima com a do narrador de O Bom Inverno. Por estes lados costumamos afirmar que a literatura também é expiação, e neste romance, mais do que noutros, nota-se bem essa necessidade expiatória. Talvez seja a característica que mais nos marcou na primeira leitura e que continuou a marcar-nos nesta segunda: a possibilidade terapêutica da literatura. Mas já falamos demasiado de aspetos exógenos; olhemos agora para o romance em si. A narrativa tem ecos de Agatha Christie aliados a Edgar Allan Poe: o ambiente remete para As Dez Figuras Negras e o thriller psicológico é uma constante a cada novo passo dado pelos protagonistas. O romance é igualmente povoado pela ideia da fuga do abismo negro, nomeadamente através da simbologia do balão de ar quente. Don Metzeger gostava de os ver levantar voo, juntamente com Bosco, ambos cativados pela fuga potencial representada por esse voo. No final, a fuga do cativeiro dá-se por um balão de ar quente, símbolo do sucesso do narrador na sua fuga e do sucesso do próprio autor na superação da sua inquietação. A misteriosa e imponente figura de Bosco também parece servir um propósito simbólico, o de uma força sem nome, invisível e omnipresente, opressivamente espreitando pelas suas vítimas: parece-nos que Bosco representa igualmente algum aspeto da inquietação que acomete o nosso narrador-autor. 
   Muito mais poderia ser dito sobre este magnífico romance, aquele a que nos atrevemos de qualificar como "o melhor" do autor: o melhor no sentido de ter conseguido rasgar com um teto auto-imposto e de ter alcançado mais longe. Sem dúvida, tal como já tínhamos considerado na altura, O Bom Inverno é o romance mais bem conseguido de João Tordo. 
 
Citações:
 
"«Se pensares bem, o que é que os médicos, no fundo, sabem sobre a nossa dor? Só têm números, tabelas, as malditas radiografias... Sabes que a primeira pessoa que foi submetida a raios X, no final do século dezanove, comentou, ao ver o negativo, que tinha a impressão de estar a olhar para a própria morte?"

"O lago, a quinze ou vinte metros da entrada, despertou-me imediatamente a atenção. A sua superfície imóvel reflectia a brancura da Lua; embora as águas fossem plácidas, aquela calma de morte parecia não ser mais do que um compasso de espera até que as águas se abrissem e revelassem uma coisa monstruosa: um navio pirata, um monstro marinho."
 
"As nuvens tinham mudado de posição e tornado a descobrir a Lua, transformando a superfície do lago num espelho de fantasmas, revelando os contornos dos rostos húmidos; os quatro rostos naquele lugar estranho e remoto, como se o mundo tivesse cancelado o seu infindável progresso rumo à destruição."
 
 
 
Pontuação: 9.9/10

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