sábado, 1 de outubro de 2016

"A Metamorfose", de Franz Kafka

   A Metamorfose consiste numa das grandes obras da literatura do século XX, e quando se trata de iniciar a leitura de grandes obras, é normal ficar-se expectante quanto ao que irá ser lido: será que vamos gostar? Esta obra é uma obra pequena, com pouco mais de 90 páginas, lê-se bem. Mas, felizmente, a qualidade não é determinada pela quantidade de frases que se escrevem, mas pelo conteúdo que cada parágrafo comporta. É o que torna esta pequena novela tão importante e marcante na literatura mundial. Não só é a primeira vez que um escritor recorre ao uso do absurdo como mecanismo literário como é um relato pleno de pensamento e conteúdo. 
   A novela começa numa manhã em que o protagonista acorda depois de uma noite mal dormida para descobrir que se transformara num gigantesco inseto. Este é um dos inícios mais famosos da literatura ocidental, e é interessante constatar que se trata de uma ideia até bastante simples mas que apenas poderia ter sido elaborada por Kafka. Normalmente verifico isto quando se trata de um autor modernista. Mas, prosseguindo com a história, que parte do ponto referido, é-nos narrada a angústia de Gregor Samsa, o protagonista, enquanto vai perdendo aos poucos as suas características humanas, e a reação da sua família. A história coloca uma questão interessante aos leitores, servindo-se do absurdo da situação: o que faríamos se nos acontecesse uma desgraça semelhante? Como reagiríamos se um membro da nossa família sofresse de uma desgraça parecida? São estas questões essenciais que atravessam esta obra. 
   Qual seria a nossa reação se nos apercebêssemos da nossa impotência perante o absurdo da vida? Esta última questão é uma constante transversal à obra de Kafka, uma vez que os seus escritos partem sempre de pontos de partida improváveis ou até impossíveis e daí evoluem filosoficamente para o absurdo de se estar vivo. Porque nada é mais absurdo do que a vida. Outra questão que esta obra levanta de forma pertinente é: o que será que faz de nós humanos? Será o nosso aspeto? O nosso comportamento? Os nossos gostos, a nossa sensibilidade? Esta novela tem um estilo de escrita muito acessível, contraposta à complexidade temática e filosófica da narrativa, o que resulta num equilíbrio literário muito bem conseguido, sem que o autor perca por um momento o domínio da prosa. A análise perspicaz que o autor faz ao comportamento humano é também muito bem conseguida, uma vez que seria exatamente assim que reagiriam os seres humanos se algum dia algo parecido se sucedesse. O medo é uma das forças motrizes principais do homem, que reage instintivamente a tudo que seja diferente do que está habituado. Talvez um dos pontos mais bem executados seja a lenta e gradual desumanização de Gregor Samsa à medida que o tempo avança. Gregor dá por si em certo ponto a questionar se continua a ser humano ou se a sua humanidade desapareceu com o seu aspeto humano. Ainda sobre humanidade, ou falta desta, A obra também se debruça sobre a mesquinhez de uma sociedade opressora que não se importa minimamente com os problemas dos outros, mesmo que esses problemas sejam gravíssimos com o é o caso dos Samsa. É famosa a história de como o amigo de Kafka, Max Brod, desrespeitou o último desejo deste de que destruíssem a sua obra após a sua morte. E, visto que Brod conseguiu trazer para a prosperidade obras como esta, valeu bem a pena o pequeno desrespeito que este teve de fazer. 
   Resta-me então recomendar fervorosamente a leitura desta novela tão bem pensada e executada, desta pérola da efabulação humana. 

Citações:
"Certa manhã, ao acordar após sonhos agitados, Gregor Samsa viu-se na sua cama, metamorfoseado num monstruoso inseto."
"Ali ficou a noite inteira, em parte passada num meio sono do qual a fome de vez em quando o fazia acordar, a par com a agitação que as preocupações e vagas esperanças lhe provocavam, mas que o levavam a concluir pela necessidade de provisoriamente se manter calmo e, através de paciência e de solicitude extremas, tornar suportáveis à sua família os contratempos que o seu estado atual lhes causava."
"Apesar de tudo, a irmã de Gregor tocava tão bem! Com a cabeça ligeiramente inclinada, para o lado, o seu olhar seguia a partitura com uma expressão triste. Gregor avançou um pouco mais, mantendo a cabeça rente ao chão a fim de eventualmente cruzar o seu olhar com o dela. Seria mesmo um animal, se a música o comovia àquele ponto?"


Pontuação: 9.9/10


Maravilhosas leituras,
Gonçalo M. Matos