sexta-feira, 8 de novembro de 2019

"O Beco da Liberdade", de Álvaro Laborinho Lúcio

   O nome de Álvaro Laborinho Lúcio é sobremaneira associado à área da qual fez carreira, tendo as suas publicações mais antigas sido dedicadas principalmente à área do direito. No entanto, desde 2014 que Laborinho Lúcio apresenta aos leitores os seus romances, sendo este o seu terceiro. 
   Neste romance, conhecemos uma aldeia portuguesa do Interior Norte, povoada por um leque de personagens singulares. O narrador é um escritor à procura de uma história para escrever, sendo assim que entra em contacto com Floriano Antunes, jornalista, que tinha uma história para partilhar. A história que o jornalista traz é a de Guilherme Augusto Marreiro Lessa, juiz jubilado, que há cinquenta anos atrás proferira uma sentença tão leve para o arguido que suscitara dúvidas quanto aos verdadeiros motivos que a teriam determinado. Na altura, fora Floriano quem acompanhara o caso, tendo sido o seu artigo cortado pela censura, pelo que achou que retomar o caso poderia trazer-lhe alguma conclusão quanto a esses tempos. Também porque o próprio Marreiro Lessa se encontrava, agora, ele mesmo no lugar de arguido, acusado da prática de um crime. É então que conhecemos, os factos de então, analisados pela distância que o tempo permite, e os de agora, tão inesperados como estranhamente conectados com os acontecimentos de há cinquenta anos atrás. Aos poucos, vamos ficando a conhecer as teias que se urdem em volta dos vários intervenientes de então, como Maria Cacilda, a viúva da primeira vítima e possuidora de estranhos poderes divinatórios, Joaquim Quitério, tolo da aldeia, Gervásio Ventura, subinspetor da PJ e encarregue do caso, Hildebrando Moreira de Castro, notário reformado, Narcisa, fiel governanta da família Marreiro Lessa, e Júlia, amante de Guilherme Augusto, entre outros personagens peculiares. Tudo conduzindo a revelações surpreendentes sobre os vários envolvidos e sobre o próprio Marreiro Lessa. 
   O romance é narrado a duas vozes, mas "coordenado" por uma delas. As vozes são as do escritor em busca de uma história e a de Floriano Antunes, aquando dos seus encontros com o juiz. Estas duas vozes distinguem-se pelas partes que compõem o romance. A primeira parte é narrada pelo escritor, que relata, na terceira pessoa, os factos ocorridos então, retirados dos pedaços de informação que o jornalista lhe colocou à disposição. A segunda parte é já o relato completo de Floriano Antunes sobre as conversas que manteve com o juiz nos dias anteriores ao seu julgamento. Ambas as partes se conjugam no sentido de ir revelando aos poucos os factos e as ficções que compõem os acontecimentos em causa. O uso do vernáculo pelo autor ganha a sua arte nas imagens que este consegue exprimir através das palavras, sejam elas pictóricas ou metafóricas. O tema fulcral do romance é a contradição que a justiça consegue abarcar, pondo em conflito a justiça formal, do direito, e a justiça material, da ética e da moral. Todo o texto pretende exprimir a enorme diferença que existe entre o ato de julgar e o ato de compreender, através, precisamente, da contradição atrás referida. E essa diferença é representada pelo juiz Marreiro Lessa jovem, no papel de julgador, e pelo mesmo, velho, agora no papel de julgado. As suas ideias e opiniões sobre o modo como a sociedade se organiza e sobre a realização da justiça mudam com o seu contacto com uma nova realidade, que lhe põe em evidência a diferença abismal que existe entre o que ele tinha como certo e o que de facto se verifica nas vidas das pessoas reais. As figuras da mulher de Marreiro Lessa, Maria da Graça, e da sua amante, Julinha, representam precisamente essa diferença entre o formal e o que é tido como certo e entre o material e o que se verifica na realidade. 
   Resta agora recomendar a leitura deste romance de indagação sobre a diferença de perspetivas humanas quanto à justiça, à moral e à própria liberdade.

Citações: 
"Aos pés da cama, nasciam duas poltronas revestidas a damasco rosa-velho replicando o dossel, e apontando a uma mesa de camilha de manto grosso, com braseira elétrica, acolitada por duas cadeiras rabo de bacalhau, com almofadinhas de atilho."
"Ali, atirado para o sofá, sorria, olhos postos na aranha afadigada a tecer a teia junto ao teto. Não lera Kafka e, talvez por isso, gostou da companhia. Afinal, pensava, bem pode haver um ponto onde as linhas do bem se encontrem com as do mal e fiem um véu que ora mostra, ora esconde, num jogo de sombras onde nem tudo é o que parece, nem tudo parece aquilo que é."
"A lei surgia-lhe como uma síntese, um traço de cada tempo, uma grosseira simplificação. De fora ficava toda a vida que nela não cabia. Talvez o direito na ilusão do absoluto tivesse a solução. Fora nisso que sempre acreditara. Mas toda a solução? À lei e ao direito poderia pedir a resposta para a tentativa de emigração clandestina, e de nenhuma dificuldade seria o percurso lógico até à condenação. Mas teriam a lei e o direito resposta para a tentativa de emigração clandestina daquele Manuel Santos, de quarenta anos, analfabeto, parecendo um velho?"


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

"O Esplendor de Portugal", de António Lobo Antunes

   Não há dúvida que a voz de António Lobo Antunes é ímpar na literatura portuguesa contemporânea. Poucos autores conseguem jogar com a língua portuguesa de uma forma tão luxuriante e genuína, mantendo a crueza da realidade circundante. Nunca é de mais repetir que poucos romanceiam como Lobo Antunes, e este romance é mais uma pedra nesse seu grande castelo literário. 
   A história que nos é narrada é a de uma família de colonos portugueses, contada pelos olhos de Isilda, a mãe, e dos seus três filhos, Carlos, Rui e Clarisse. Pelos olhos de Isilda, vemos o passado recheado de um poder ilusório desta família, que detinha uma fazenda de algodão e os seus criados, e um presente de incerteza e de melancolia, de fuga dos soldados da UNITA e dos revoltosos angolanos. Articulando-se com as memórias e relatos de Isilda estão as vozes dos seus três filhos. Primeiro, vemos pela perspetiva de Carlos a sua existência medíocre num apartamento pequeno de mais para si e para a sua mulher, Lena. Carlos recorda os seus tempos na fazenda em Angola ao mesmo tempo que tenta interpretar o seu presente longe da sua família e casado com uma mulher que nunca o quis verdadeiramente. O grande mote da perspetiva de Carlos é a sua intenção gorada de reatar as suas relações familiares com os seus irmãos, assaltado pelos remorsos do seu passado. De seguida, seguimos a perspetiva de Rui, internado numa clínica pobre devido à sua epilepsia. Observamos a sua versão do passado como sendo o ator de acontecimentos brutais, mesmo cruéis, mas desculpado pela sua condição. As suas ações passadas são por si vistas sem remorso, com algum regozijo até. Por fim, seguimos a visão de Clarisse. Amante de um político importante da capital, Clarisse recorda, como o seu irmão Carlos, o seu passado e invoca-o para poder interpretar o seu presente. No entanto, não é o remorso que sente pelas suas ações, mas antes, um misto de arrependimento e de alívio, num desapego do passado e da sua família (tirando o seu irmão Rui, a quem oferece inclusive casa), mas sempre com um fio de ligação a essas memórias. Aqui e ali encontramos fragmentos de pensamentos e impressões de outros familiares e relacionados com a família, como para complementar certos acontecimentos com os factos completos. Tudo isto no sentido de explorar um capítulo duro na história de Portugal e os seus efeitos em todos os envolvidos. Sente-se o desmembramento e a dissolução dos laços familiares e afetivos como que refletindo a realidade portuguesa ultramarina. 
   Existem neste romance dois tempos: um estático e um dinâmico. O tempo estático é a noite de Natal de 1995. O tempo dinâmico vai de 24 de julho de 1978 a 24 de dezembro de 1995, a mesma noite de Natal. Estes dois tempos são os pontos chave do romance. As vozes de Carlos, Rui e Clarisse desfiam as suas narrativas nessa noite de Natal, ao passo que a voz de Isilda vai acompanhando o evoluir da situação em Angola, na sua fazenda cercada e isolada. O romance encontra-se dividido em três partes, que separam precisamente as três vozes narrativas, intercalando os capítulos entre a voz de Carlos, Rui ou Clarisse e a de Isilda. Muitas vezes, vemos uma impressão ou uma memória do ponto de vista de um dos três para no capítulo a seguir vermos uma versão diferente contada pela mãe, tudo de forma a compor melhor o retrato da dissolução familiar que é o enredo central do romance. António Lobo Antunes é luxuriante nas suas impressões. Existe um imagismo muito acentuado que nos permite aparecer no meio do caos que se viveu em Angola no pós 25 de Abril. Ou talvez, no meio da confusão psicológica que esse acontecimento teve nos seus envolvidos. Essa luxúria imagética alia-se ao recurso magistral ao vernáculo. Um mestre da linguagem, Lobo Antunes consegue encher-nos de palavras e ainda assim nos deixar ansiosos por mais. É notável o anacoluto empregue pelo autor, que é mesmo uma marca distintiva de toda a sua obra narrativa. Aliado ás quebras de parágrafo e ao uso reduzido de vírgulas, o autor aproxima-se da fala coloquial no sentido de conferir uma maior oralidade à sua escrita. Como no conjunto da sua obra (e na maior parte das obras literárias modernas e pós-modernas), a narrativa é desfiada em fluxo de consciência, no qual o passado e o presente se tornam plásticos e mutuamente intrusivos, e se sucedem as quebras de lógica e de sequência narrativa. Todos estes recursos são empregues no sentido de conferir ao romance um caráter labiríntico, que é também uma marca notável da escrita antuniana. Terminando esta análise, uma referência à ironia que, apesar de não ser uma característica literária deste autor, neste romance é empregue. Refiro-me, nomeadamente, à ligação entre o título e a história narrada. Tanto a atribuição do título O Esplendor de Portugal, como a referência ao Hino Nacional no início do livro, atribuem uma carga irónica ao texto todo, uma vez que Lobo Antunes não retrata uma realidade assim tão esplendorosa ou digna de orgulho nacional de Portugal. 
   António Lobo Antunes é um romancista notável e este é mais um dos seus contributos para essa sua classificação, pelo que mais não tenho a fazer a não ser recomendar a leitura deste romance, e de outros, do autor. São sem dúvida leituras inevitáveis para todos quantos apreciam o magistral uso do português.

Citações:
"Há qualquer coisa de terrível em mim. Às vezes à noite o murmúrio dos girassóis acorda-me e sinto o ventre aumentar na escuridão do quarto com aquilo que não é um filho, não é um inchaço, não é um tumor, não é uma doença, é uma espécie de grito que vai sair não pela boca mas pelo corpo inteiro e encher os campos como o uivo dos cães."
"e eu era diferente daquele nome, não era aquele nome, não podia ser aquele nome, as pessoas ao chamarem
   Carlos
   chamavam um Carlos que era eu em elas não era eu nem eu em eu, era um outro da mesma forma que se lhes respondia não era eu quem respondia era o eu deles que falava, o eu em eu calava-se em mim e portanto sabiam apenas do Carlos delas"
"o meu pai todo desaparecido salvo as pernas, o pedaço de pele de frango que separava a meia da calça, combatendo as páginas do jornal de súbito vivas, que se torciam, espadanavam, espalhavam no chão, o relógio a caminhar de número em número em passadas de peru ao comprido do tempo"


Pontuação: 7.5/10


Gonçalo Martins de Matos

domingo, 1 de setembro de 2019

"Um beijo dado mais tarde", de Maria Gabriela Llansol

   A obra de Maria Gabriela Llansol é ainda relativamente desconhecida do grande público, mas nos meios literários, é considerada uma das autoras mais criativas da literatura portuguesa contemporânea. Muitos são os trabalhos académicos e os artigos que se versam sobre um obra singular de uma autora sem par como esta. Um beijo dado mais tarde foi galardoado em 1990 com o Grande Prémio de Romance e Novela APE/IPLB.
   A história deste romance prende-se com a indagação psicológica da narradora pelas imagens e cenas da sua infância à luz das suas vivências e dos seus receios atuais. Como ponto de partida, a narradora enceta nessa navegação após a morte da sua tia Assafora, percorrendo os corredores e as memórias da casa onde habitou, e recordando as impressões, sentimentos e receios que sentiu na sua infância, acompanhada das diversas peças e objetos que recheiam a casa, testemunhas desses momentos do crescimento da narradora. A história é marcante no plano formal, do qual já falarei, sendo que o seu espírito, o seu âmago (pelo menos, assim parece) é descrever a desfragmentação familiar que o tempo opera, para além do crescimento que esse mesmo tempo nos oferece. 
   Conforme disse, é nos aspetos formais que a obra de Maria Gabriela Llansol se distingue. Desde logo, pela forma como a história é apresentada. A autora apresenta-nos uma fusão de estilos e de géneros, sem que cheguemos a conclusão se estaremos perante um diário, um romance, uma novela, ou mesmo se estamos perante um livro de prosa, de poesia ou de outro género. Já no que toca à história, esta não é linear na forma como vai sendo discorrida. Nesse campo, encontramos a resposta na própria obra da autora. Llansol refere-se aos fragmentos que povoam a sua obra como cenas-fulgor, fragmentos impressionistas que espelham o teor geral da narração. Estas cenas-fulgor povoam-se de figuras, que tanto podem corresponder a pessoas reais como a imaginárias, animais, objetos e mesmo frases ou conceitos abstratos. E nesta obra nota-se bem essa característica única. Em cenas breves sabemos os pensamentos da autora através de figuras como "Témia, a rapariga que temia a impostura da língua", Aossê, a estátua de Myriam ensinando Ana a ler, a Nuvem Pairando, Bach, entre muitas outras. É através desta neblina de cenas e de figuras que o leitor vai percorrendo a narrativa e absorvendo as impressões e os sentimentos conexos ao espírito geral da obra. Quanto à forma da escrita, também somos apanhados por uma estrutura muito pouco convencional, plena de quebras de parágrafo, de espaços entre palavras, de sublinhados vazios e até de palavras destacadas a negrito. Todos estes aspetos gráficos servem para reforçar o caráter fragmentário do texto. 
   Não recomendo a leitura de Maria Gabriela Llansol para os leitores de ocasião. Mas recomendo muito a leitura desta autora peculiar aos leitores mais preparados para uma experiência literária diferente de tudo o que já leram. 

Citações:
"Minha tia Assafora está com grilhões deitada na cama, e uma melodia cantada por Johann desce no quarto porque ela comigo entra em toda a parte; ela tem um volume mínimo, à mercê dos ventos. Seus olhos vêem ainda menos do que dantes, e traço intimamente, sobre eles, o sinal da música"
"1  dias de dores terríveis               sentei-me, com meu barro, junto de Johann; há muito tempo que ele não é músico               e a música,     quem me chama? Debaixo do seu peito pesado está a resposta a esta pergunta; mas eu não vejo em visão o seu corpo, não o determino; ele tornou-se agora um objeto, um grande ser móvel, que se define pelo esplendor que eu dou à sua presença."
"O antiquário deu-lhes uma pancada seca com o dedo, e verificou que eram de cristal. O som cria o ouvido, o ouvido faz o cérebro, o cérebro concebe a existência do homem só vulto que passou por aqui hoje. E levou Témia, dizendo-me: «téme-a»."


Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

"a máquina de fazer espanhóis", de valter hugo mãe

   As reservas que ainda tinha com a escrita de Valter Hugo Mãe, derivadas daquela primeira leitura e posterior redescoberta de o remorso de baltazar serapião, dissiparam-se definitivamente com este romance. Romance que encerra a "tetralogia das minúsculas", trata-se este a máquina de fazer espanhóis de um belíssimo romance por um dos autores mais originais da literatura portuguesa contemporânea.
   A vida de antónio jorge da silva muda drasticamente com a morte de laura, a sua mulher. De repente e sem aviso, aos 83 anos, viúvo e amargurado com o resto de vida que teria sem a sua mulher a seu lado, antónio silva é posto num lar de idade, o tempos felizes, onde passará o resto dos seus dias. De início misantropo e ensimesmado, de luto pela sua situação, aos poucos vais travando conhecimento com outros dos habitantes do lar. É assim que conhecemos personagens como o senhor pereira, o silva da europa, o anísio e o esteves, que, juntos, terão as suas conversas, os seus debates e as suas galhofas de forma a enfrentarem a depressão que tende a assaltar-lhes os pensamentos no resto de vida que ainda têm. É principalmente nestes personagens, e noutros, como por exemplo américo, médico que se afeiçoa a antónio silva, que se foca o romance, sendo tudo e todos perscrutados e relatados pelos olhos de antónio silva, a par com as suas reflexões sobre os temas que percorrem este romance: a velhice, a morte, a viuvez, a amizade e a vida. É este o andamento do romance, em vagas e acalmias, até a um final agridoce, tão brilhante quanto poético.
   Como é sabido, este é o último romance da "tetralogia das minúsculas", que, como o nome indica, se demarca por os seus quatro títulos estarem compostos completamente em minúsculas, sem qualquer distinção ortográfica de início ou fim de discurso direto e sem qualquer tipo de pontuação que não sejam pontos e vírgulas. Esta inteligente forma de o autor homenagear a intenção de Saramago de aproximar a escrita da linguagem oral é, assim, levada ao extremo. No entanto, é uma forma que não choca de modo nenhum com a narrativa, chegando nós mesmo a certo ponto da leitura que nem nos faz diferença se existem maiúsculas ou se não há travessão a iniciar o diálogo. No entanto, este livro tem um pormenor que os outros não têm. Dois capítulos neste romance estão escritos de forma tradicional, com maiúsculas e com outra pontuação, para além de estar escrito na terceira pessoa. Os temas e os personagens deste romance são sublimemente tratados, cada um dos velhos do lar, com as suas histórias, servem o seu propósito de dar a conhecer a antónio silva o conforto da amizade no difícil luto que atravessa. Dois aspetos devem aqui ser relevados. O primeiro é a existência o lar de um esteves com metafísica, em contraponto com o Esteves sem metafísica do poema de Álvaro de Campos. O outro é as ominosas visitas que o protagonista sofre de pássaros negros que entram pela janela para o magoar. A escrita de Valter Hugo Mãe é lírica e luminosa. No entanto, há uma crueza bem característica no tratamento da narrativa, que nos confronta com o que julgamos ser o acertado e nos retira a tapete algumas vezes, deixando-nos suspensos no seu significado. Há sem dúvida uma grande carga emocional na escrita deste autor, e não nos deixa indiferentes a tudo quanto sofrem os seus personagens. Um pormenor muito curioso é o destino da estatueta da nossa senhora, apelidada pelo protagonista de "mariazinha", que o acompanha pelas páginas desta obra. Não sendo antónio silva um homem religioso, a sua afeição à estatueta é ao mesmo tempo comovente e simbólica, uma vez que não representa a espiritualidade normalmente associada à imagética católica, mas acaba por representar todas as suas "aventuras" no lar, todos os bons momentos que passou com os seus novos amigos. 
   Resta-me recomendar, naturalmente, o romance. Todos quanto apreciem o lirismo e o esteticismo das construções de Valter Hugo Mãe devem ler esta sublime obra. Não imagino melhor elogio que o fornecido por António Lobo Antunes na contracapa deste livro: "A maior parte dos livros são escritos para o público; este é um livro escrito para os leitores."

Citações:
"com a morte, também amor devia acabar. ato contínuo, o nosso coração devia esvaziar-se de qualquer sentimento que até ali nutrira pela pessoa que deixou de existir. pensamos, existe ainda, está dentro e nós, ilusão que criamos para que se torne todavia mais humilhante a perda e para que nos abata de uma vez por todas com piedade."
"o senhor pereira soltou uma gargalhada  e disse, e a sorte é não ter os pastorinhas agarrados ali também, de joelhos a rezar, sabe, é costume. e eu respondi, que pena, ia dar-me um gozo ainda maior poder desparasitar a mariazinha dessa biches toda. coitada da rapariga, que até lhe põem uma expressão com vontade, mas depois não reage, fica como se a casa de banho estivesse ocupada."  
"quando dizemos que antigamente é que era bom estamos só a ter saudades, queremos na verdade dizer que antigamente éramos novos, reconhecíamos o mundo como nosso e não tínhamos dores de costas nem reumatismo. é uma saudade de nós próprios, e não exatamente do regime e menos ainda de salazar."


Pontuação: 9.5/10


Gonçalo Martins de Matos

terça-feira, 13 de agosto de 2019

"O deslumbre de Cecilia Fluss", de João Tordo

   Eis que chegamos ao terceiro e último romance da "trilogia dos lugares sem nome. É atribuída a esta série de três romances, sem ligação sequencial entre eles, a mudança de paradigma na escrita de João Tordo. De facto, neste romance assistimos a um encerrar de algo. Cumpre saber o que foi encerrado. 
   Neste romance, conhecemos um protagonista ativo e um protagonista passivo. Conhecemos Matias Fluss, o narrador da primeira parte da obra, e Cecilia Fluss, a sua irmã. Matias é um rapaz plácido que atravessa as inquietações normais da adolescência, às quais acrescenta um gosto especial pelas fábulas budistas. Cecilia é uma rapariga já com os seus 17 anos, indomável e sofrendo os efeitos da descoberta da idade adulta. Pela voz de Matias, na primeira parte do romance, conhecemos pedaços da vida quotidiana de ambos, as fábulas budistas que fazem parte da existência de Matias, os seus passeios com os seus colegas de escola, as inquietações da sua primeira paixão e a sua existência conjunta com Cecilia, nos momentos em que esta desperta para as atribulações do primeiro amor. Além disso, conhecemos o gosto que Matias tem pelo tempo que passa na cabana do seu tio Elias, que sofre de uma espécie de demência. O suceder dos dias é interrompido por um acontecimento abrupto e chocante, que interrompe e muda o rumo dos acontecimentos. Na segunda parte, conhecemos um pouco da existência de Matias com as sombras do passado que o atormentam e da sua convivência com a sua própria estirpe de demência, além da sua vida quotidiana com o seu cão Lars, passados já muitos anos sobre os acontecimentos da primeira parte. A sua vida de professor universitário é interrompida pelos seus demónios, que vieram do passado para o atormentarem novamente. Na terceira parte, conhecemos a viagem que Matias faz em conjunto com o seu tio Elias, Lars e Deanie, uma estudante da universidade na qual Matias leciona, a uma ilha na qual habitou Elias, alguns anos antes de ser internado definitivamente no hospital psiquiátrico. Nesta ilha, finalmente o passado e Matias irão reencontrar-se e procurar uma forma de ambos se aceitarem e de se redimirem um ao outro. 
   Conforme foi referido, o livro divide-se em três partes. Na primeira, a narração é feita na primeira pessoa por Matias Fluss. Na segunda, é um narrador omnisciente que nos narra na terceira pessoa. Na terceira parte, regressamos à primeira pessoa, desta feita na voz de Deanie. Neste romance já se sente a mudança estilística. As temáticas que circundam os primeiros dois romances desta "trilogia" fazem-se anunciar vivamente também neste, mas a forma como o autor as explora encontra-se transfigurada da forma como foram tratadas em obras anteriores. As temáticas da melancolia, do passado, do paraíso, da solidão e do isolamento são o tema fulcral deste romance, anunciando-se expressamente ou através de símbolos, como nos romances anteriores. O farol, São Paulo, a ilha, todos eles símbolos fulcrais deste universo de lugares sem nome. Como no romance anterior, nomes anteriores são revisitados: Alma, a mãe de Matias e de Cecilia, Elias, a própria Cecilia, Pedersen, A., a ex-mulher de Matias, Lars... Os locais familiares dos dois romances anteriores reencontram-se também no espaço deste romance. Gostei principalmente do jogo metatextual que João Tordo faz com os nomes, lugares e objetos dos três romances, criando um universo próprio, verosímil e pulsante, criador de uma sensação de realidade (à semelhança dos seus romances anteriores, que também recorriam a mesmas personagens para criar uma sensação semelhante, mais exacerbada, no entanto, nestes três romances). Não deixam de ser também curiosos os paralelos que o autor estabelece entre a história que pretende narrar e as fábulas budistas, as suas lições oferecendo-nos pistas para interpretar os acontecimentos descritos. Regressando à metatextualidade, é muito curiosa a forma como o autor consegue interligar os três romances. O próprio afirmou tantas vezes antes que os livros não possuem uma ordem sequencial, pelo que não podem ser considerados uma trilogia (daí o nosso cuidado uso das aspas). Apenas neste romance final percebemos o que nos quis transmitir com essa afirmação. Não o direi aqui, pois trata-se de uma aventura que terão de ter por vós mesmos.
   Enfim, trata-se de uma obra que deve ser lida, mas aqui acrescento o seguinte: devem ser lidos os três romances, pois a verdadeira obra, a verdadeira maravilha de leitura, é este universo de lugares sem nome, convidando-nos a nele mergulhar e a explorarmos os seus recantos. Um prazer de leitura, em suma.

Citações:
"Há muitos anos ouvi alguém dizer que a memória, que serve para muitas coisas, tem como função mais importante impedir que o tempo nos engane. Sim: a decadência das faculdades cognitivas, a relatividade do sujeito na existência e mais não sei o quê. Como se existisse uma fórmula qualquer parecida com isto: Memória + Tempo - Decadência = Verdade."
"chamam-se suicidas, aqueles que sucumbem ao medo e a outras formas de intimidação, aqueles que sucumbem porque não se permitem sentir, porque não se dão autorização de perder. Eu sou um perdedor. (...) E continuo a perder, disse ele, mas, sabes que mais?, quanto mais perco, menos tenho medo."
"(...) Matias observou a maneira como a luz inundava a rua. Lembrou-lhe um quadro de Joseph Mallord William Turner chamado Ulysses Deriding Polyphemus. Vira-o há muitos anos na National Gallery, em Londres, com A.; um quadro que a fizera chorar e a ele dera a impressão de estar a olhar para a realidade propriamente dita, como se o lugar de onde o estivessem a ver fosse, na verdade, um esboço inacabado, insatisfatório."


Pontuação: 9.6 (9.5 + 0.1 pela "trilogia")/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 5 de agosto de 2019

"O Som e a Fúria", de William Faulkner

   William Faulkner é considerado um dos grandes romancistas do século XX, tendo a sua obra sido premiada com o Nobel da Literatura em 1949. Juntamente com James Joyce e Virginia Woolf, Faulkner foi um dos grandes cultores da técnica narrativa do fluxo de consciência. Esta técnica denota-se nas páginas deste que é o seu romance mais conhecido e considerado a sua obra-prima. 
   A narrativa prende-se com o declínio da família Bascomb Compson, uma grande família numa cidade fictícia no sul dos Estados Unidos, como símbolo da decadência do próprio Sul norte-americano. Esse declínio é relatado em quatro partes, que são as que compõem o romance. Na primeira parte, observamos o mondo aos olhos de Benjy Compson, um deficiente mental de 33 anos, que entre passado e presente nos tenta relatar o ambiente familiar que o rodeia. Na segunda parte, conhecemos a perspetiva de Quentin Compson, o filho mais velho, e somos conduzidos através dos processos mentais e das memórias marcantes que o conduziram a um final abrupto. Na terceira parte, conhecemos o mundo aos olhos de Jason Compson, o filho mais novo, um homem cínico e brutal, retrógrado, manipulador e calculista, enquanto vamos conhecendo as suas perspetivas sobre os outros e a sua própria família, para além da ação principal do romance. Na quarta e última parte, um narrador omnisciente relata-nos o dia de vários personagens que conhecemos ao longo da narrativa, principalmente, a criada negra dos Compson, a Dilsey. Entre estes quatro relatos navegam personagens como o Pai e a Mãe dos Compson, Jason e Caroline Compson, os criados negros destes, como Dilsey, Luster, T.P., entre outros, a quarta filha dos Compson, a irmã dos outros três, Caddy Compson e a sua filha Quentin. Todos eles caminham pelas páginas do romance em direção a um abismo do qual a outrora magnífica casa dos Compson já não tem possibilidade de fuga. 
   Conforme foi dito, o romance encontra-se dividido em quatro partes, as três primeiras tendo a estrutura de um relato, feito pelos três descendentes masculinos dos Compson, na primeira pessoa, e a última sob a forma de uma narração tradicional na terceira pessoa. O que é mais extraordinário neste romance é a estrutura de cada uma das partes. A técnica narrativa do fluxo de consciência é a regra nas três primeiras partes. A primeira parte é enigmática ao abrir o romance, pois trata-se de um relato impressionista levado a cabo por um deficiente mental. Isto leva a que a narração conheça saltos temporais e curvas e contracurvas de lógica, tudo formando um labirinto de fragmentos nos quais o leitor caminha perdido, como se atravessasse um denso nevoeiro. A segunda parte leva-nos ao fatídico derradeiro dia de Quentin Compson, pelo que somos guiados através de pensamentos, memórias e impressões que já nos vão fornecendo algumas luzes sobre a evolução do declínio familiar central do romance. No auge deste relato, uma parte destaca-se, na qual o narrador se expressa através de frases curtas, sem pontuação gráfica e sem regra, todas a frases em minúsculas, técnica utilizada para nos fazer sentir a dissolução mental que opera na cabeça de Quentin. A terceira parte é a que, dentro dos relatos, nos fornece mais luzes sobre o ambiente circundante, sendo que Jason Compson enceta numa busca no passado para a justificação do presente, sempre se colocando no papel da vítima, daquele que teve de fazer sacrifícios pela sua família, quando na realidade não passa de um oportunista manipulador que engana todos quantos o rodeiam, revelando também uma natureza brutal e violenta quando se trata do desafio que é controlar a filha da sua irmã Caddy, a Quentin, que foi enviada para a casa dos Compson pela mãe para que pudesse ter uma vida melhor que a que teria com ela. Na última parte, a narrativa segue uma técnica tradicional, na terceira pessoa. É nesta parte final que todas as peças do puzzle se encaixam e onde conhecemos por fim o abismo onde a família Compson caiu sem possibilidade de regresso. O retrato que é feito dos personagens não é lisongeiro, à exceção da criada negra, Dilsey, que é a única personagem no romance que parece controlar o rumo das vidas do romance. Caddy apresenta-se neste romance como uma protagonista silenciosa, figurando em todos os relatos, sem nunca nos ser dado a conhecer o seu lado dos acontecimentos. Caddy é a verdadeira vítima da decadência da família, acabando por ser a que sofre mais com tudo o que acontece, não lhe facilitando nada o feitio manipulador do irmão. Porque tal se verifica, a sua filha, Quentin, acaba por também sofrer, desejando sempre poder escapar do poço fundo onde rastejavam os Compson. Todos estes personagens, e o ambiente que os rodeia, são um símbolo da decadência do sul dos Estados Unidos e da perda do sentido que o Sonho Americano sofreu no século XX. 
   Nada mais há a acrescentar além de que se trata este de um romance de leitura obrigatória para todos quanto apreciam o experimentalismo modernista literário do século XX, claro que não descartando a própria história que enforma esta obra. Uma obra de arte total, portanto. 

Citações:
"A Caddy abraçou-me e eu ouvia-nos a todos nós e à escuridão, e uma coisa que eu podia cheirar. Depois já conseguia ver as janelas onde as árvores estavam a zumbir. Então a escuridão começou a girar com formas suaves e brilhantes, como sempre acontece, mesmo quando a Caddy diz que eu estive a dormir."
"De todas as palavras, as mais tranquilizantes. As palavras mais tranquilizantes. Non fui. Sum. Fui. Non Sum. Algures um dia ouvi os sinos. No Mississipi ou no Massachussetts. Eu fui. Não sou. No Massachussetts ou no Mississipi. O Shreve tinha uma garrafa no baú. Não vais sequer abri-la Mr. e Mrs. Jason Richmond anunciam o Três vezes. Dias. Não vais sequer abri-la casamento da sua filha Candace a bebida ensina-nos a confundir os fins com os meios Eu sou. Bebe. Eu não fui."
"Ben começou de novo a soltar gemidos longos, desesperados. Mas não era nada de importância. Apenas sons. Dir-se-ia que, por uma conjunção de planetas, nele encontravam voz por um instante todo o tempo, toda a injustiça e toda a pena."


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 18 de julho de 2019

"O paraíso segundo Lars D.", de João Tordo

   O paraíso segundo Lars D. é o segundo romance da "trilogia" dos lugares sem nome, série de três livros de João Tordo sem ligação sequencial entre eles. É-lhes atribuída a mudança de paradigma na escrita do autor, e neste segundo romance nota-se com mais força esse fator. Mas mais para a frente analisaremos isso melhor.
   Neste romance, conhecemos a narradora, uma mulher sexagenária, casada com Lars, um escritor da mesma idade. Este tem uma personalidade solitária e ensimesmada, e vive coberto de uma angústia profunda. Há largos anos que não publica nenhum livro. Na primeira parte do livro, conhecemos Lars pelos olhos da sua mulher, que vai discorrendo sobre episódios antigos ou recentes da sua vida conjugal e da tarefa nem sempre simples de partilhar a sua vida com Lars. Nesta primeira parte, sabemos de antemão que o escritor desapareceu, e que a narradora também tenta levar a sua vida com o peso dessa ausência. No seu prédio, no último andar, mora um jovem estudante de Teologia de seu nome Xavier, que se torna uma companhia para as inquietações da narradora. Na segunda parte, é-nos relatada, já por uma terceira pessoa omnisciente, a trama "principal" do romance: a madrugada de insónia que leva Lars a descobrir no seu carro uma jovem desmaiada, de seu nome Gloria, a levá-la para a sua e a cuidar dela. O escritor e a mulher decidem ajudar a rapariga, que diz ter sido assaltada e ter-se refugiado do frio no carro de Lars, levando-a o escritor até à estação de comboios. Só que, em vez de fazer isso, ambos seguem até uma zona de praia e ficam ambos a morar numa casa de verão. Na terceira parte, regressamos ao relato da narradora, mas desta vez apenas localizando-se temporalmente no presente sem Lars e nos dias com Xavier, em busca do consolo da inquietude que a ausência do escritor deixou na sua mulher. 
   Anteriormente, referi que estes abrem um novo capítulo na escrita do autor, colocando de seguida a dúvida se não estariam antes a encerrar o capítulo anterior. Bem, as dúvidas dissiparam-se neste segundo romance. Neste, a mudança nota-se com mais força. Os temas típicos da obra de João Tordo mantêm-se, mas o estilo de romancear transfigura-se. Assistimos, assim, aqui, à metamorfose estilística do autor e da sua obra, mais do que no romance anterior. O romance encontra-se dividido em três partes, sendo o narrador, na primeira e na terceira, autodiegético, e na segunda heterodiegético. Esta segunda parte do romance demarca-se, não só por essa diferença narrativa, mas também por nela ocorrer a ação "física" do romance. No resto do livro, a ação é mais psicológica, focada na memória e nos mundos interiores dos personagens (note-se que há passagem de tempo em todas elas, mas é diferente a perceção que temos dessa passagem). Na segunda parte, vemos o enredo principal ocorrer, a fuga de Lars com Gloria, e que vida levaram eles nessa fuga. É fascinante a reutilização que João Tordo faz das personagens cujos nomes já ouvimos em O luto de Elias Gro. Nomes como o de Lars, de Xavier, de Alma e de Cecilia, personagens fulcrais no romance anterior, também aparecem aqui, com o mesmo peso existencial, mas com as suas importâncias narrativas modificadas. O simbolismo que marca o romance anterior também se faz sentir neste. A ilha, o farol e a ideia de paraíso são marcas presentes e indispensáveis neste universo de lugares sem nome. Como nos anteriores romances do autor, há uma grande melancolia e angústia que se faz sentir nas páginas deste romance. Um último pormenor curioso é o romance inédito que Lars deixa antes de desaparecer, um manuscrito de seu nome O luto de Elias Gro. Este exemplo de metatextualidade proporciona uma delícia acrescentada à leitura do romance, na medida em que o autor nos guia através dos pensamentos e angústias de Lars para percebermos as angústias do narrador d' O luto. A perspetiva que nos é trazida neste romance altera-nos a perspetiva inicial que tivemos do romance anterior, o que constituiu um exercício fabuloso por parte de João Tordo. Mais uma pedra na pirâmide literária que este autor tem vindo a erguer. 
   Posto isto, trata-se de uma obra que deve merece, e bem, ser lida por todos aqueles que procurem uma leitura carregada de sentimento, mas simultaneamente sóbria e inovadora. 

Citações:
"Ultimamente, tenho reparado nisto. Que somos abraçados pelo pó; que entre o nosso corpo e as restantes coisas existe um espaço que julgamos vazio, mas que está cheio de uma matéria qualquer que é pó e mais do que pó, que é sombra e mais do que sombra."
"Tacteia o caminho até à sala e, uma vez aí, abre as janelas de par em par. A noite é um hino sobre o mar, a Lua enorme e imóvel no meio do céu, ainda uma nuvem pardacenta chorando sobre as águas. O brilho do céu provoca-lhe um horror intenso."
"(...) espreitou pelas ripas de madeira e pensou, nesse momento, que todos os sons aconteciam a todos os instantes mas viviam soterrados por outros ruídos, mais prementes, menos graciosos, que os escondiam: as marés ocultas pelas obras de um prédio, o grasnar de patos bebés pelas vozes de um grupo de italianos, o bocejar de um urso na floresta pelo motor de um avião. Tudo estava escondido por outra coisa qualquer e, debaixo de tudo, um avassalador silêncio."


Pontuação: 9/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 12 de julho de 2019

"Aprender a rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares

   Após um início meio conturbado com a obra e a escrita de Gonçalo M. Tavares, queria aqui desde já retificar o génio literário que se observa na sua obra. Se antes vacilei neste reconhecimento ao autor, nada mais foi que imaturidade literária. Reconheço-o agora. Gonçalo M. Tavares é, de facto, um dos escritores contemporâneos mais originais e brilhantes e merece, sem dúvida, todos os prémios e reconhecimentos que lhe são atribuídos. Este Aprender a rezar na Era da Técnica é o quarto e último volume da tetralogia O Reino, da qual fazem parte Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém
   O protagonista desta história, Lenz Buchmann, teve uma educação cruel e militarista por parte do seu pai Frederich, o que o marcou e moldou na sua idade adulta. Lenz é um médico muito competente, um dos melhores profissionais do hospital, precisamente por causa da sua educação. Desprovido de sentimentos fúteis, trata-se de um "homem forte", objetivo e pragmático, para além de frio e calculista. Depois de nos ser dada a conhecer muita da ideologia pessoal de Lenz, entramos naquela que parece ser a história chave deste romance: o abandono do exercício da medicina por Lenz para se poder dedicar à política. Possuindo as características já referidas, a ascensão de Lenz no Partido do poder é rápida, eficaz e impiedosa, conseguindo ele chegar, no pouco tempo que esteve no Partido, ao lugar de vice-presidente. No intermédio de tudo isto, é-lhe atribuída uma secretária, de seu nome Julia Liegnitz, que o irá acompanhar o resto da narrativa. Todo este sucesso tem um final abrupto, dando-se um acontecimento definitivo que marca o fim de todo o seu sucesso. A posição de Lenz no mundo é abalada e este nunca mais a recupera.
   Como os anteriores, este romance trabalha a perspetiva pessoal dos seus personagens sobre o mundo. Neste caso, a perspetiva do protagonista, Lenz Buchmann. O subtítulo do romance, "Posição no mundo de Lenz Buchmann", demonstra isso mesmo. E que perspetiva! Através dos seus olhos, conhecemos as suas ideias sobre os fortes e os fracos, sobre a natureza e o homem, sobre a paz e a guerra, e sobre como estes conceitos andam sempre em conflito, na luta pela posição mais vantajosa no mundo. Como nos romances anteriores, estas ideias servem para traçar um retrato negro sobre o poder, a crueldade, a ambição e a loucura na alma humana. O romance encontra-se dividido em três partes, cujos nomes não referirei pois oferecem revelações fundamentais sobre a história. Na primeira parte, conhecemos o "homem forte" e as suas ideias, para além da sua ascensão no Partido; na segunda parte, vemos a alteração da posição no mundo de Lenz; a terceira parte consagra em definitivo esta alteração. Lenz é um homem cujas ideias e percurso nos levam, de início, a não torcer por ele, porque não conseguimos concordar com a sua visão do mundo. No entanto, curiosamente, não conseguimos de deixar de reconhecer a lógica por trás dos seus pensamentos. Aí reside um dos pontos fortes deste romance (e dos outros, no geral), a lógica aos serviço da loucura e da crueldade. O duelo força vs fraqueza percorre o romance de uma ponta a outra. Nos aspetos formais, este romance, como já escrevi para Jerusalém, possui uma escrita que parece objetiva e analítica, mas que está carregada de subjetividade e simbolismo quanto baste, que é fácil não repararmos numa primeira leitura de qualquer dos romances que compõem esta teralogia. Também a forma dos capítulos é fascinante e peculiar, sendo estes compostos por capítulos principais divididos em sub-capítulos, cada qual com uma frase que espelha a ideia ínsita a cada um deles. 
   Concluindo, portanto, trata-se esta de uma leitura fascinante e intrigante que não pode deixar de ser feita por todos quanto adorem a leitura de uma astuta análise das profundezas mais obscuras da alma humana. 

Citações:
"Todas as frases de simpatia podiam ser vistas, segundo um outro olhar, como frases de ataque. Ao deixar passar o outro à frente, um homem não estava a aceitar ser segundo mas sim a preparar o mapa do terreno para poder controlar visualmente o homem que por instantes se julgava em primeiro lugar. A vantagem de alguém estar à nossa frente, dissera uma vez o pai de Lenz, é estar de costas viradas para nós. Não importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa." 
"Frederich apontava para o jardim e para o seu jardineiro, há muito entrado na decadência física, e dizia para os filhos que aquilo era bem o exemplo do que é a natureza nos tempos de paz: até um velho, analfabeto, com pouca força de braços, e incapaz de dizer uma única frase sensata, até um homem desses, um homem secundário, conseguia controlar aquele jardim, aquela outra máquina, aquela máquina verde."
"Todas as estratégias militares diziam o óbvio: apanhar o inimigo de costas, quando muito frente a frente se formos mais poderosos, e de cima, claro - quem está em cima tem vantagem, desde a construção dos castelos altos que todos o sabem - no entanto nenhuma referência era feita a um inimigo que viesse por baixo; o ataque, por baixo não era considerado."


Pontuação: 9.5/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 1 de julho de 2019

"Lunário", de Al Berto

   Al Berto é sem dúvida um dos nomes incontornáveis da poesia portuguesa do final do século XX. Como acontece com inúmeros outros poetas, a sua obra em prosa acaba por muitas vezes ser secundarizada face à sua obra poética. Esse pormenor costuma levar-me a indagar aquela. 
   Beno, o protagonista desta narrativa, recorda a vida errante e excessiva que o levou até ao momento em que começamos a história. Uma vida deambulatória, de excessos e noturna. Desde logo nos é dito que nos primeiros tempos, Beno não se apegava a nada, viajando de cidade em cidade e nunca ficando em nenhuma demasiado tempo. Uma noite, no café que frequentava, o Lura, é abordado por um homem que não lhe diz o seu nome, mas os dois começam a viver juntos, dando-lhe Beno o nome de Nému. E juntos viveram. Um dia são visitados por Alba, que sabemos ser amiga de ambos e mãe de um filho com Beno, para voltarem a sair à noite. Mais para frente conhecemos Kid e Zohía, ambos amigos de Beno, que no auge do romance serão peças fulcrais. Mais tarde ainda, conheceremos Alaíno, companheiro de Zohía. Todos estes personagens se movem nas suas vidas, errantes, sem saber com o que contar no dia seguinte, até que cada uma das histórias abertas se vai fechando até à conclusão final. 
   Antes de mais, este livro trata-se de um texto autobiográfico, desde logo se evidenciando com as semelhanças entre o nome do autor e o nome de Beno, passando pelo gosto pela escrita e pela pintura por que ambos são conhecidos. Sendo assim, todas as vidas e todas as histórias que encontramos nesta obra são reflexos do próprio autor, desdobrado em ambos, procurando alguma lógica na fragmentação diária da sua vida. Há, no caráter deambulatório da vida dos personagens, uma reflexão do próprio autor na sua própria deambulação. O livro é soberbamente escrito, denotando-se uma sensibilidade e uma inquietação fora do comum que, nunca é de mais repetir, sempre marcaram a vida de Al Berto, evidentes a quem conhecer a sua obra. A construção dos capítulos é fascinante. Cada capítulo é uma fase lunar (daí o nome do romance), sendo que no início e no fim temos o anoitecer e o amanhecer, o "Crepúsculo" e a "Umbria", culminando tudo num "Cântico" final. Tudo se desenvolve em crescendo até ao apogeu, à "Lua Cheia", decrescendo o ritmo e o passo a partir de aí. É toda a prosa, no fundo, um enorme poema. E que poema. É fascinante observar a desfragmentação do autor nas suas personas literárias, de modo a conseguir alguma fuga da inquietação que o assombra. Um outro aspeto, mais formal, que me fascinou neste livro foi a capa. Apesar do que diz o acertado ditado popular sobre as capas dos livros, a verdade é que esta capa faz parte da primeira atração que este livro provoca (esta edição da Assírio & Alvim, claro). Da capa deste livro fita-nos intensamente um jovem Al Berto, enigmático, convidando-nos a vir conhecê-lo. É uma capa muito bem pensada para o objetivo do livro (sendo até por isso mesmo que as edições desta chancela da Porto Editora colocam os seus poetas nas capas dos seus livros), uma complementaridade entre o conteúdo e a forma. E isso apenas contribuiu para o fascínio por esta obra.
   Resta portanto recomendar a leitura desta obra, especialmente se alguma inquietação incomodar o hipotético leitor; pode ser que assim encontre uma fuga para o que o assola.

Citações:
"Uma brisa noturna e carregada de sal desatou a soprar. O dia começava a morrer. A espuma das ondas tornara-se quase vermelha, a água ardia. Beno sentiu-se envolto numa espécie de torpor que o cegava. Olhava o mar, pressentia-o mais do que, na verdade, o via. E tudo o que via, afinal, não era senão uma mancha azulada estendendo-se a perder de vista, metalizada e ondulante, onde o crepúsculo derramava breves incêndios."
"Disseram um ao outro como se chamavam. Compraram cigarros e livros. Beberam café numa esplanada junto ao rio. Passearam-se até que o halo avermelhado do crepúsculo caiu sobre a cidade. A noite tornou-se densa, e os asfaltos refletiam a feérica luminosidade dos néons e dos semáforos."
" - Há tempos, aprisionei o tigre com olhos de rubi numa imagem de papel. Levei-o para dentro do meu sonho e passei noites inteiras a domá-lo, e agora ele anda à solta, muito manos, sedutor, por toda a casa. Já não sonho com ele, sonho com Beno. Mas o tigre só é verdadeiramente visível quando me dói alguma coisa e os espelhos me prendem o olhar. Pergunto-me sempre que estranho sonho me terá acordado..."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

domingo, 16 de junho de 2019

"O luto de Elias Gro", de João Tordo

   O luto de Elias Gro é o primeiro romance da denominada "trilogia" dos lugares sem nome, série de três livros de João Tordo que exploram temas íntimos da alma humana. Sem ligação sequencial entre os três, estes abrem um novo capítulo na escrita do autor (ou será que encerram? mais para a frente analisaremos melhor este ponto). 
   A história começa com o narrador a contar-nos a vez em que habitou um farol numa ilha, de modo a fugir por momentos da sua vida. Este narrador, lúgubre e melancólico, dependente do álcool para atenuar a sua dor, apresenta-nos de início como conheceu um alemão que lhe arrendou um farol numa ilha para poder viver longe da sua anterior existência, descrevendo-nos a ilha e os seus habitantes. Após a primeira apresentação que nos é feita da Casa das Águas, uma casa vitoriana que tinha sido habitada por um escritor, Lars Drosler, e que fora engolida pelo mar, o narrador descreve-nos a breve rotina que levou nos primeiros tempos na ilha. Rotina que mudou quando, distraído, o narrador atropelou, de bicicleta, Cecilia, uma pequena rapariga espirituosa e perita em anatomia, e Alma, uma mulher muito carinhosa com quem Cecilia passava grande parte do seu tempo livre. Num dos dias subsequentes, o narrador conhece Elias Gro, um padre anglicano, pai de Cecilia, que lhe pede o favor de acompanhar a partir de aí a sua filha até à escola, que era no continente. Estranhando tal pedido, mas aquiescendo de forma a compensar o remorso que sentia em ter atropelado Cecilia, o narrador assim o faz. E é assim que eles começam a passar muito tempo juntos e a trocar as suas ideias e pensamentos. A certa altura, Elias Gro expressa os seus desejos em recuperar a Casa das Águas, recuperando tudo o que pudesse ser dos restos afundados da casa. É assim que o narrador e Cecilia têm acesso aos escritos de Lars Drosler, e encetam numa análise dos mesmos. A parte final da história revela-nos como o narrador vai aos poucos aprendendo a lidar com a sua dor, e como o luto não é algo que pertence a cada um individualmente, mas é um sentimento partilhado por todos nós. O narrador apercebe-se disso quando fica a conhecer os lutos de Alma e, especialmente, de Elias Gro. É com esta renovada perceção que a história avança para uma conclusão inconclusiva, na qual a dor e a renovação se enlaçam e aproximam. 
   A história começa pelo final. É uma afirmação curiosa e é o eufemismo perfeito para descrever a analepse inicial deste romance. O narrador, como muitos outros antes na obra de João Tordo, é um personagem melancólico, perseguido pelos seu passado e pelos seus demónios, procurando uma fuga e uma expiação dos mesmos. É assim que o narrador decide, primeiro, escrever a sua peculiar história, como terapia, e, em segundo, viajar para a ilha e morar num farol. O farol é um símbolo universal de isolamento mas de esperança, metáfora ideal para a melancolia, a dor e a esperança amalgamadas num mesmo sentimento, numa mesma torre de ferro, fria e distante, mas cuja luz orienta os barcos perdidos no mar. A Casa das Águas também tem a sua função metafórica, quer a que se afundou, quer a que Elias Gro sonhou reconstruir. O luto, como esta casa, consome e afunda, sem nunca conseguirmos recuperar totalmente. Mas isso não quer dizer que não seja possível iludir essa dor. João Tordo é um autor que se apoia em imagens metafóricas de uma forma muito bem conseguida, e este livro é talvez aquele que, até agora, mais evidenciou essa sua capacidade. Todos os personagens fulcrais deste romance, o narrador, Elias Gro, Cecilia, Alma, Lars Drosler, e François Xavier (o faroleiro que habitava no farol), exprimem as suas formas de dor e as suas maneiras de lidar com a dor, de fazer o seu luto e de aprender a, aos poucos, recuperar dela. O final do romance é deixado em aberto, na opinião deste que vos escreve, precisamente para exprimir essa ideia de inconclusão que a dor nos destina. Os temas da expiação, da inquietude, da melancolia e da tristeza são temas recorrentes na obra de João Tordo, aqui encontrando uma espécie de súmula, precisamente porque, pelo menos é dado a entender, nesta obra (e talvez na "trilogia") o autor procura um encerramento temático, e, em simultâneo, um início. 
   Portanto, remato este texto com a habitual recomendação desta obra. Trata-se de uma leitura que se funde com os nossos demónios, estejam eles ocultos ou não, e que nos ajuda, também, a orientar a dor e o luto que tão inerentes são a todos nós. Um livro que vale a pena ser lido. 

Citações:
"O isolamento é uma doença dos nossos dias, disse ele. E tanto é uma doença que, como em todos os estados patológicos, só encontramos alívio quando nos apercebemos de que, sem darmos por isso, perpetuámos essa condição porque é mais doloroso sair dela do que permanecer doente. A sanidade tem um preço."
"Por alguma razão Noé construiu uma arca em forma de um barco. Deus disse-lhe para a construir de boa madeira resinosa e com betume por dentro e por fora. (...) Já nesses tempos se sabia que a água, que é vida por dentro quando a bebemos, corrói tudo por fora. Pense nas marés. A erosão consome ilhas inteiras e, se for preciso, continentes. Contra a água não há nada a fazer. O fogo? A água apaga-o. O ar? A água consome-o. A terra? A água inunda-a. Não é por acaso que o Senhor decretou um dilúvio em vez de um incêndio."
"E os milagres são hiperbólicos porque o verdadeiro milagre passa despercebido. Cristo teve de ressuscitar os mortos e curar os leprosos para que nós percebêssemos que até as coisas mais simples são divinas. Se Cristo se limitasse a construir uma casa, diríamos: Mas isso posso eu fazer. A hipérbole é a fundação de toda a religião. Sim, é isso mesmo: temos de ser confrontados com as coisas que estão fora do nosso alcance para darmos valor àquelas que nos são permitidas."


Pontuação: 8.5/10


Gonçalo Martins de Matos

terça-feira, 23 de abril de 2019

"O Ano da Morte de Ricardo Reis", de José Saramago

   Quando O Ano da Morte de Ricardo Reis foi adicionado ao programa de leitura em Língua Portuguesa, substituindo o Memorial do Convento, ficou-me a pulga atrás da orelha e tive que verificar por mim de que trata este romance, e se fará sentido uma tal substituição no programa educativo. Adianto desde já que não, não faz sentido uma tal substituição, apesar da leitura peculiar que este, como os outros romances de Saramago, proporciona. A crítica que é feita pelo autor neste é mais direcionada ao Portugal salazarista, ao contrário do Memorial, que tem uma crítica mais universal, mais enquadrada num sistema de ensino que pretenda abrir os horizontes dos estudantes. Apesar disso, estamos perante mais um romance magnificamente composto por um escritor tão peculiar como o nosso Nobel.
   Passados 16 anos de vida no Brasil, Ricardo Reis regressa a Lisboa, de vapor, instalando-se no Hotel Bragança, onde ficará nos próximos meses. Nos tempos em que vive no hotel, a vida vai-se desenrolando, a seu passo e sem pressa, quando uma das criadas, de seu nome Lídia, e ele começam a ter encontros noturnos. Ricardo Reis ocupa os seus dias passeando por Lisboa, observando as suas gentes e as suas paisagens, redescobrindo os seus aspetos e pormenores. Pouco depois, Ricardo Reis conhece Marcenda Sampaio, a quem começa a cortejar, mantendo, no entanto, a sua relação com Lídia. Paralelamente, Ricardo Reis é visitado pelo fantasma de Fernando Pessoa, com quem se encontrará por diversas vezes ao longo da obra. Tudo isto se passa até ao dia em que, após uma situação desagradável para Ricardo Reis, este decide finalmente abandonar o hotel e morar em casa própria, arranjando também um emprego. Os seus encontros com os três personagens mencionados continuam, tornando-se, até, mais frequentes. E é assim que se desenvolve o resto da narrativa até a um final tão poético como agridoce. 
   Conforme acima foi dito, este é um romance que se foca nos primórdios do Portugal salazarista e da sociedade vigente à época, pelo que, ao bom estilo saramaguiano, essa crítica é feita de forma extremamente sarcástica e certeira, atravessando o romance como seu fio condutor. Só nos apercebemos no final, ao refletir sobre o início, que essa crítica é feita de princípio a fim. Pode ser feita uma divisão deste romance em duas partes: a parte da ingenuidade, que corresponde aos meses que Ricardo Reis passa no Hotel Bragança, não se passando grandes coisas no seu dia-a-dia, não desconfiando este do quanto Lisboa mudara (ou mudava); e a parte da descoberta da verdade, que começa com a saída de Ricardo Reis do hotel. Este último momento marca bem essa divisão. Antes, Ricardo Reis, confinado ao seu quarto de hotel e à sua rotina, ignora que o Estado Novo se vai fixando em Portugal, mas, após a saída do hotel, Ricardo Reis apercebe-se dos movimentos estranhos que se vão passando à sua volta. Marcante desta nova realidade que se lhe afigura perante os olhos é as notícias que chegam do resto do Mundo (principalmente de Espanha), que pintam o quadro do surgimento da Europa ditatorial. Claro, o estilo que distingue Saramago não deixa de se verificar neste romance. O uso comedido de vírgulas, os parágrafos longos, a narração e o discurso impregnados de oralidade. E, claro, a mordacidade do sarcasmo nas críticas. Os personagens que povoam este romance têm o papel de representar um aspeto da sociedade em inícios do Estado Novo, e mesmo da sociedade que será no durante. Destaque seja feito a Salvador, o vigilante e controlador gerente do Hotel Bragança, ao qual nada escapa no seu hotel, a Victor, um agente da PIDE que se faz sempre acompanhar de um forte e incontrolável fedor a cebola, e ao par de velhos que se senta todos os dias no mesmo banco do Alto de Santa Catarina, a nova morada de Ricardo Reis. A estátua de Camões e o busto do Adamastor são presença constante no romance, como que relembrando a simultânea grandeza e pobreza de Portugal, país complexo de grandes heróis mas de brandos costumes. 
   Reitero, antes de mais, algo que afirmei acima, este não é um romance indicado para leitura obrigatória num programa escolar. No entanto, trata-se de mais um lúcido romance por parte de um autor particularmente propenso a fazê-los. Por isso, este romance deve ser lido por todos quantos apreciem a obra saramaguiana e, no geral, um bom romance. 

Citações:
"Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspeto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro."
"Outras fontes que venham a descobrir-se serão duvidosas, por apócrifas, ainda que verosímeis, certamente não coincidentes entre si e todas com a verdade dos factos, que ignoramos, quem sabe se, faltando-nos tudo, não teremos nós de inventar uma verdade, um diálogo com alguma coerência, um Victor, um doutor-adjunto, uma manhã de chuva e vento, uma natureza compadecida, falso tudo, e verdadeiro." 
"Também o Chiado, que mal lhes fez o Chiado, Que foi chocarreiro, desbocado, nada próprio do lugar elegante onde o puseram, Pelo contrário, o Chiado não podia estar em melhor sítio, não é possível imaginar um Camões sem um Chiado, estão muito bem assim, ainda por cima viveram no mesmo século, se houver alguma coisa a corrigir é a posição em que puseram o frade, devia estar virado para o épico, com a mão estendida, não como quem pede, mas como quem oferece e dá" 


Pontuação: 6.5/10


Gonçalo Martins de Matos