terça-feira, 13 de agosto de 2019

"O deslumbre de Cecilia Fluss", de João Tordo

   Eis que chegamos ao terceiro e último romance da "trilogia dos lugares sem nome. É atribuída a esta série de três romances, sem ligação sequencial entre eles, a mudança de paradigma na escrita de João Tordo. De facto, neste romance assistimos a um encerrar de algo. Cumpre saber o que foi encerrado. 
   Neste romance, conhecemos um protagonista ativo e um protagonista passivo. Conhecemos Matias Fluss, o narrador da primeira parte da obra, e Cecilia Fluss, a sua irmã. Matias é um rapaz plácido que atravessa as inquietações normais da adolescência, às quais acrescenta um gosto especial pelas fábulas budistas. Cecilia é uma rapariga já com os seus 17 anos, indomável e sofrendo os efeitos da descoberta da idade adulta. Pela voz de Matias, na primeira parte do romance, conhecemos pedaços da vida quotidiana de ambos, as fábulas budistas que fazem parte da existência de Matias, os seus passeios com os seus colegas de escola, as inquietações da sua primeira paixão e a sua existência conjunta com Cecilia, nos momentos em que esta desperta para as atribulações do primeiro amor. Além disso, conhecemos o gosto que Matias tem pelo tempo que passa na cabana do seu tio Elias, que sofre de uma espécie de demência. O suceder dos dias é interrompido por um acontecimento abrupto e chocante, que interrompe e muda o rumo dos acontecimentos. Na segunda parte, conhecemos um pouco da existência de Matias com as sombras do passado que o atormentam e da sua convivência com a sua própria estirpe de demência, além da sua vida quotidiana com o seu cão Lars, passados já muitos anos sobre os acontecimentos da primeira parte. A sua vida de professor universitário é interrompida pelos seus demónios, que vieram do passado para o atormentarem novamente. Na terceira parte, conhecemos a viagem que Matias faz em conjunto com o seu tio Elias, Lars e Deanie, uma estudante da universidade na qual Matias leciona, a uma ilha na qual habitou Elias, alguns anos antes de ser internado definitivamente no hospital psiquiátrico. Nesta ilha, finalmente o passado e Matias irão reencontrar-se e procurar uma forma de ambos se aceitarem e de se redimirem um ao outro. 
   Conforme foi referido, o livro divide-se em três partes. Na primeira, a narração é feita na primeira pessoa por Matias Fluss. Na segunda, é um narrador omnisciente que nos narra na terceira pessoa. Na terceira parte, regressamos à primeira pessoa, desta feita na voz de Deanie. Neste romance já se sente a mudança estilística. As temáticas que circundam os primeiros dois romances desta "trilogia" fazem-se anunciar vivamente também neste, mas a forma como o autor as explora encontra-se transfigurada da forma como foram tratadas em obras anteriores. As temáticas da melancolia, do passado, do paraíso, da solidão e do isolamento são o tema fulcral deste romance, anunciando-se expressamente ou através de símbolos, como nos romances anteriores. O farol, São Paulo, a ilha, todos eles símbolos fulcrais deste universo de lugares sem nome. Como no romance anterior, nomes anteriores são revisitados: Alma, a mãe de Matias e de Cecilia, Elias, a própria Cecilia, Pedersen, A., a ex-mulher de Matias, Lars... Os locais familiares dos dois romances anteriores reencontram-se também no espaço deste romance. Gostei principalmente do jogo metatextual que João Tordo faz com os nomes, lugares e objetos dos três romances, criando um universo próprio, verosímil e pulsante, criador de uma sensação de realidade (à semelhança dos seus romances anteriores, que também recorriam a mesmas personagens para criar uma sensação semelhante, mais exacerbada, no entanto, nestes três romances). Não deixam de ser também curiosos os paralelos que o autor estabelece entre a história que pretende narrar e as fábulas budistas, as suas lições oferecendo-nos pistas para interpretar os acontecimentos descritos. Regressando à metatextualidade, é muito curiosa a forma como o autor consegue interligar os três romances. O próprio afirmou tantas vezes antes que os livros não possuem uma ordem sequencial, pelo que não podem ser considerados uma trilogia (daí o nosso cuidado uso das aspas). Apenas neste romance final percebemos o que nos quis transmitir com essa afirmação. Não o direi aqui, pois trata-se de uma aventura que terão de ter por vós mesmos.
   Enfim, trata-se de uma obra que deve ser lida, mas aqui acrescento o seguinte: devem ser lidos os três romances, pois a verdadeira obra, a verdadeira maravilha de leitura, é este universo de lugares sem nome, convidando-nos a nele mergulhar e a explorarmos os seus recantos. Um prazer de leitura, em suma.

Citações:
"Há muitos anos ouvi alguém dizer que a memória, que serve para muitas coisas, tem como função mais importante impedir que o tempo nos engane. Sim: a decadência das faculdades cognitivas, a relatividade do sujeito na existência e mais não sei o quê. Como se existisse uma fórmula qualquer parecida com isto: Memória + Tempo - Decadência = Verdade."
"chamam-se suicidas, aqueles que sucumbem ao medo e a outras formas de intimidação, aqueles que sucumbem porque não se permitem sentir, porque não se dão autorização de perder. Eu sou um perdedor. (...) E continuo a perder, disse ele, mas, sabes que mais?, quanto mais perco, menos tenho medo."
"(...) Matias observou a maneira como a luz inundava a rua. Lembrou-lhe um quadro de Joseph Mallord William Turner chamado Ulysses Deriding Polyphemus. Vira-o há muitos anos na National Gallery, em Londres, com A.; um quadro que a fizera chorar e a ele dera a impressão de estar a olhar para a realidade propriamente dita, como se o lugar de onde o estivessem a ver fosse, na verdade, um esboço inacabado, insatisfatório."


Pontuação: 9.6 (9.5 + 0.1 pela "trilogia")/10


Gonçalo Martins de Matos

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