quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

"Ensaio sobre a Lucidez", de José Saramago

   Tenho notado que tenho lido os romances de José Saramago em altos e baixos, ora encontrando uma obra-prima sublime, ora encontrando um romance menos satisfatório. Aparentemente, consagra-se esta ideia, porque, se o último romance do nosso Nobel da Literatura me deixou um tanto desapontado, Ensaio sobre a Lucidez dardeja-me novamente com a experiência ímpar que é ler este grande romancista. E que ótima leitura para os 100 anos de José Saramago.
     Na anónima capital de um país sem nome, mas que nos é já familiar (mais para a frente explicamos), é dia de eleições, e se, à primeira vista, o temporal que se fazia sentir parecia prender os eleitores a suas casas, o romper do sol trouxe consigo todos os eleitores em massa. Contados os votos, é em choque que as instituições do país constatam que 83% dos votos expressos estavam em branco. Tal acontecimento gera uma reação rápida por parte do governo, que impõe um estado de sítio na capital, isolando-a do resto do país, e estabelecendo os órgãos de governo da nação fora desta, sendo-lhe retirado o estatuto de capital deste país sem nome. Nas suas inquietações sobre a situação da capital, o governo, em conluio com o presidente da república, vai aos poucos sitiando de facto a cidade, com o intuito de esmagar a rebelião brancosa que se havia manifestado. Quando uma carta dirigida aos líderes políticos traz consigo revelações sobre um caso passado, que pode estar relacionado com o caso presente, a um comissário, a um inspetor e a um agente da polícia é dada a missão de investigar as alegações desta. E é assim que damos por nós a acompanhar estas investigações, que nos vão revelando aos poucos que o país é o mesmo onde, quatro anos antes, uma estranha epidemia de cegueira branca flagelou os habitantes, para além de a suspeita recair sobre uma mulher desconhecida, que fora a única a não ficar cega. Por fim, mesmo ao estilo saramaguiano, somos conduzidos com paciência e mestria pelos meandros da entropia humana face a acontecimentos inexplicáveis até a um destino final avassalador.
   Deixamos de lado um dos "mistérios" que levantámos: Ensaio sobre a Lucidez é uma sequela de Ensaio sobre a Cegueira, repetindo-se os símbolos e os tons que marcaram este romance. O branco é a cor predominante, e a cegueira e a visão são um binómio constante ao longo da narrativa. Se em Ensaio sobre a Cegueira Saramago jogou com a polissemia da palavra "cegueira", como falta de visão ou falta de lucidez, neste romance é bastante mais perentório nos seus significados: há quatro anos, as pessoas desta cidade estiveram cegas, agora viam verdadeiramente. O voto em branco nada mais é que a verdadeira inteligibilidade, a lucidez que faltava aos habitantes deste país. Seguindo o seu modus operandi, Saramago começa por narrar, numa primeira parte, o acontecimento em si e os seus contornos sociais, descrevendo as reações das instâncias governativas à subversão de que eram alvo e a reação da população às medidas do governo. O elemento de sequela deste romance surge na segunda parte, quando o governo compara esta nova forma de cegueira branca com a de há quatro anos atrás e quando reaparecem na narrativa os protagonistas do primeiro Ensaio, com especial foco na mulher do médico. Esta segunda parte trata também da micronarrativa da investigação levada a cabo pelo comissário e pelos seus subalternos. José Saramago não se detém nas suas críticas, analisando com grande lucidez as hipocrisias e os autoritarismos que se escondem nos gestos humanos, principalmente na atuação do governo quando se vê a braços com o poder executivo reforçado. 
   A classe política e as pessoas são antónimos neste romance, com o governo e os militantes partidários a representarem um conjunto de interesses individuais e as pessoas a representarem um interesse comum. Mesmo a antonímia dentro do próprio governo, entre os ministros da cultura e da justiça e os ministros da defesa e do interior, representa uma duplicidade inerente à nossa alma humana, para além de estabelecer uma oposição perentória entre a reflexão crítica e o pragmatismo bacoco que muitas vezes os líderes políticos cultivam como qualidade. Um aspeto muito divertido desta obra é a identificação dos partidos existentes - o partido da direita, o partido do meio e o partido da esquerda - com os seus equivalentes reais, numa irónica comparação implícita. Uma história alicerçada sobre uma epidemia de votos em branco surgiu numa altura em que a vida real convida a que se reflita lúcida e ponderadamente sobre aquilo que julgamos estar certo ou garantido, sejam os nossos sistemas partidários, sejam os nossos direitos inalienáveis. Num mundo pós-covid, já parece quase alienígena, ou estranhamente familiar, o isolamento profilático de uma cidade inteira e a suspensão dos direitos e liberdades - e consequente aumento do poder governativo - à conta de uma declaração de estado de sítio, o que não deixa de ser uma curiosidade: quem tiver lido este livro antes da infame pandemia esteve longe de imaginar que um dia pudessemos mesmo ter passado por algo semelhante. Aliás, Ensaio sobre a Cegueira coloca a mesma questão e suscita a mesma curiosidade. Quanto à brilhante oralidade da escrita saramaguiana, continua como já a conhecemos, pelo que não há nada mais a acrescentar. A caligrafia da capa deste livro pertence a Dulce Maria Cardoso. 
   Trata-se de um romance que convida à reflexão, à boa maneira de Saramago, e que nos delicia com a brilhante lucidez do nosso Nobel da Literatura. 

Citações: 

"Quem desta maneira argumente esquece que o universo não só tem lá as suas leis, todas elas estranhas aos contraditórios sonhos e desejos da humanidade, e na formulação das quais não metemos mais prego e mais estopa que as palavras com que malamente as nomeamos, como também tudo nos vem convencendo de que as usa para objetivos que transcendem e sempre transcenderam a nossa capacidade de entendimento"

"Os direitos não são abstrações, respondeu o ministro da defesa secamente, os direitos merecem-se ou não se merecem, e eles não os mereceram, e o resto é conversa fiada, Tem toda a razão, disse o ministro da cultura, de facto os direitos não são abstrações, têm existência até mesmo quando não são respeitados, Ora, ora, filosofias, Tem alguma coisa contra a filosofia, senhor ministro da defesa, As únicas filosofias que me interessam são as militares, e ainda assim com a condição de que nos conduzam à vitória, eu, caros senhores, sou um pragmático de caserna, a minha linguagem, gostem dela ou não gostem, é pão pão, queijo queijo"

"As rádios insistiam, Interrompemos uma vez mais a emissão para informar que o ministro do interior fará às seis horas uma comunicação ao país, repetimos, às seis horas o ministro do interior fará uma comunicação ao país, repetimos, fará ao país uma comunicação o ministro do interior, uma comunicação ao país fará às seis horas o ministro do interior, a ambiguidade desta última fórmula não passou despercebida ao primeiro-ministro, que, durante uns quantos segundos, sorrindo aos seus pensamentos, se entreteve a imaginar como diabo conseguiria uma comunicação fazer um ministro do interior."


Pontuação: 9.8/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

"Fado Alexandrino", de António Lobo Antunes

  Como se mais certezas fossem precisas, António Lobo Antunes é, a par de José Saramago, um gigante da literatura lusófona. Em cada romance de Lobo Antunes tenho encontrado autênticos tesouros de linguagem tão geniais como viscerais.
    Cinco ex-combatentes da guerra colonial encontram-se numa noite de copofonia, ao longo da qual entram em diversas reminiscências sobre a própria guerra, sobre as suas vidas no regresso a Portugal no período pré-revolucionário e sobre como as suas vidas deram as mais variadas voltas com a Revolução e com o pós-revolução. Abílio, o soldado, recorda principalmente o acolhimento por parte do seu tio na sua empresa e em sua casa, onde conhece Odete, por quem teve uma paixão. Jorge, o alferes, rememora sobre as tensões com a família de classe alta da sua ex-mulher e sobre o processo de divórcio, quer com a sua mulher quer com a sua filha. Artur, o tenente-coronel, rumina a sua viuvez ao regressar a Portugal, a par com o progresso da sua carreira rumo ao generalato durante as convulsões pós-revolução. Celestino, o oficial de transmissões, recorda os seus tempos de militância comunista no regresso à pátria e a sua prisão e libertação no período revolucionário, assim como a sua paixão por Dália, sua camarada. O Capitão, o quinto elemento da noite dos militares, não tem participação ativa, ouvindo as queixas e as frustrações dos seus camaradas, servindo esporadicamente de narrador. A noitada dos cinco segue também ela um percurso caricato, terminando, como as próprias aspirações portuguesas pós-revolucionárias, num final tão inverosímil como tragicómico. 
   O paralelismo que Lobo Antunes opera entre as vidas e os infortúnios dos cinco militares e o percurso de Portugal entre o fim da ditadura e a consagração democrática é de um delicioso pessimismo. Este autor nunca escondeu, nas suas obras, uma visão mais pessimista da oposição entre as promessas da mudança e o conformismo português. Nenhuma das quatro vidas que nos são relatadas tem alguma hipótese de felicidade. E, no entanto, a esperança continua lá. A melancolia é uma constante na nossa autoavaliação histórica, e este romance captura essa visão de mundo tão peculiar de uma forma magistral. António Lobo Antunes é um dos mestres da língua e da linguagem portuguesas. As suas obras estão repletas de puro vernáculo, que dá sempre um imenso gosto de ler. O domínio da linguagem expressa-se no uso imaginativo que faz de certos recursos estilísticos que se tornaram apanágio de Lobo Antunes, como as descrições metonímicas com enfoque na sinédoque, as sinestesias e as personificações, ou a prosa polissindética. O romance está dividido em três partes, "antes da revolução", "a revolução" e "depois da revolução", que marca os períodos aos quais se prendem as recordações de cada um, e cada parte subdivide-se em 12 capítulos. Os quatro primeiros capítulos de cada parte correspondem aos quatro distintos narradores, aglomerando-se e confundindo-se as vozes com a progressão dos restantes capítulos. A única exceção é o capítulo 11 da terceira parte, que corresponde a uma personagem que não participa na ação, mas que tem um papel fundamental enquanto súmula da mensagem que Lobo Antunes redige, e que constitui um momento de prosa sublime no panorama da literatura portuguesa. O tempo do romance funciona de uma forma bastante antuniana; existe o tempo da ação, que ocorre na noitada, e os tempos psicológicos, onde a ação decorre nos períodos relatados, mas nas cabeças dos ex-combatentes. Devido a esse facto, durante os relatos de cada um deles, o tempo ziguezagueia entre a noitada e o tempo narrado, o que gera intromissões e comentários por parte dos restantes presentes, assim como fluxos de consciência do personagem sobre quem incide o foco. Em alguns capítulos, o autor dá-se a pequenos momentos de plasticidade estrutural, iniciando parágrafos com minúsculas, isolando certas sequências de ideias do resto do parágrafo ou acompanhando o movimento descrito com a redação das palavras que o descrevem.
   Fado Alexandrino é um grade romance de um autor fenomenal, e deve ser lido e apreciado em toda a sua brilhante originalidade. 
 
"Saiu a arrastar a mala, misturado com os colegas, do edifício desbotado do quartel, e distinguiu logo, do outro lado das grades, no passeio, uma espécie de monstro marinho de caras, de corpos e de mãos, que se agitava, aguardando-os, no meio-dia cinzento da Encarnação, em que os semáforos boiavam ao acaso, suspenso na neblina como frutos de luz."
 
"O telefone tocou e momentos depois o braço do tenente-coronel movia-se no escuro, às cegas, tacteando a pele grumosa da alcatifa à procura do auscultador: os dedos tropeçaram num chinelo, numa espiral de fios, num livro caído, aberto como uma ferida nas trevas, sangrando letras"
 
"O oficial de transmissões virou à direita e à esquerda nas ruelas varicosas do Bairro Alto, nos aneurismas dos becos, nos inchaços das escadinhas, enquanto os reformados, lá em cima, vogavam de chapéu e gravata por cima dos algerozes e das cornijas dos telhados: Quais são os reformados, perguntou-se ele, e quais são os pombos se todos se alimentam das migalhas do vento?"
 
 
Pontuação: 9.8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos