quarta-feira, 31 de maio de 2023

"Eliete", de Dulce Maria Cardoso

   Desde a nossa última leitura, tomámos uma decisão que aplicaremos a partir desta recensão: abrir com a primeira frase de cada uma das leituras que fizermos. E a frase que abre Eliete, obra merecidamente vencedora do Prémio Oceanos 2019, desprende imediatamente os seus leitores do chão: "Eu sou eu e o Salazar que se foda."
   Conhecemos imediatamente Eliete, uma mulher de meia idade, lúcida, mas conformada, que se encontra no hospital porque a sua avó paterna teve o primeiro episódio de demência, possivelmente Alzheimer. Eliete é casada, tem duas filhas e uma vida pacata, apesar de aborrecidamente normal. Dividida entre as suas inquietações presentes, como o equilíbrio da vida familiar, o avanço inclemente da idade ou o estado de saúde da sua avó, e memórias intrusivas do seu passado em comum com a mãe a avó. Entre as máscaras do presente e os fantasmas do passado, Eliete reflete sobre o seu verdadeiro papel no meio de tudo, levando-a através de um processo de transformação que tem eco no vendaval que se avizinha na sua vida, o qual, entre passos de caracol ou saltos sobre precipícios, trará um facto inesperado e demolidor, que lhe implodirá com a "vida normal" que julga conhecer. 
   O fôlego com que Dulce Maria Cardoso escreve desarma desde logo o leitor: as frases sucedem-se em catadupa, interligadas de forma a que a leitura nunca pareça interrompida, mantendo-nos agarrados aos desenvolvimentos que envolvem Eliete. A protagonista desta obra, Eliete, é uma personagem viva: tem a profundidade, a personalidade, as inquietações e as vivências que uma pessoa de carne e osso sentirá em si, e isso torna a leitura deste romance fascinante. Eliete existe, quase que a conseguimos ver à nossa frente enquanto progride na sua própria história. A forma como Eliete nos narra os eventos que experiencia contribui para essa vida própria, conseguindo a autora pôr na boca da sua narradora um português simultaneamente vernáculo e contemporâneo, atravessado ocasionalmente pelos inevitáveis léxicos anglófonos. A força do romance encontra-se precisamente aqui, na sua protagonista: sem dúvida que a história também contribui para a cuidada construção da obra, mas Eliete é uma personagem escrita como poucas na literatura contemporânea. Eliete é uma personagem imperfeita, com virtudes e defeitos, com esperanças e desapontamentos, e isso é o que a torna tão fascinante. O discurso direto é introduzido pelo emprego de maiúscula no seguimento da frase em que se insere, sem outros sinais gráficos que não as vírgulas que o antecedem, imprimindo na narração de Eliete um cariz marcadamente oral, que mais uma vez lhe acrescenta a tridimensionalidade que a distingue. No que toca à narrativa, à descrição da sucessão de eventos juntam-se analepses que nos dão a conhecer como Eliete chegou ao momento presente, que contribuem para a oralidade real da sua narração. O subtítulo de Eliete é A Vida Normal, sendo é identificado como primeira parte. Ficamos expectantes com o que virá para lá da vida normal.
   Eliete é, sem sombra de dúvida, um romance de leitura indispensável, cujo único defeito é o facto de se tratar "apenas" da primeira parte da história. 
 
Citações: 
 
"Senti na sua voz a ironia com que contabilizava dolorosamente cada um dos meus quarenta e dois anos e detive-me nos olhos do médico ainda sem bolsas de gordura, na pele ainda sem rugas, na cabeleira ainda farta. Pensei depois nos olhos sumidos do Jorge, na sua pele enrugada, na ferradura de cabelo que contornava o cocuruto pelado. Não é justo o que os anos nos fazem. Imparáveis, os anos haveriam de desmanchar a ironia da voz do médico, e mais depressa ainda desmanchar-lhe-iam o corpo. Sim, não é justo o que os anos nos fazem, mas é justo que o façam a todos."
 
"Como é que eu podia explicar à mamã que o problema não era ela, mas a deformação que o tempo sofria na casa dela? Eu entrava na casa da mamã e o tempo tornava-se um mecanismo tosco, como se alguém o esculpisse em fisga, eu á mercê dessa fisga, eu munição contra mim mesma, a ser puxada para trás, no tempo e depois atirada, desprotegida contra o presente, onde via todos os meus erros e fracassos. A casa da mamã guardava tudo o que eu não quis ser, e que ironicamente acabei por ser."
 
"Sim, sim, quero ser amada, sim, quero uma tempestade, mas uma tempestade a proteger-me do mundo, quero ser o olho do furacão, a calma em torno da qual tudo se agita, quero ser causa e consequência do que se passa à minha volta, quero não estar parada, caminhar com a previsibilidade incerta dos temporais, quero a brutalidade do que é efémero em vez da eterna compostura sólida de planetas que gravitam, quero não estar a banhos no vaivém monótono de dias e marés."
 
 
Pontuação: 9.2/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

domingo, 21 de maio de 2023

"Lolita", de Vladimir Nabokov

   Lolita é considerado um dos grandes romances da literatura anglófona do século XX. Controverso e ambíguo, é uma leitura muito curiosa no que toca à premissa e às consequências da leitura. Mas já lá vamos. 
   Humbert Humbert, pseudónimo de um homem que aguarda julgamento por homicídio nos Estados Unidos, é o narrador da história de como conheceu Dolores Haze, a titular Lolita, e de como manteve com ela uma relação abusiva e de cariz sexual, depois de se tornar seu padrasto. Depois de imigrar da Europa para os Estados Unidos, e ciente da sua obsessão com raparigas pubescentes, às quais dá o nome de "ninfetas", Humbert narra como travou conhecimento com Charlotte Haze, mãe de Dolores, e como usou a sua proximidade para se aproximar da rapariga, então com 12 anos. Humbert casa com Charlotte, selando os destinos de toda os envolvidos. Depois da morte prematura de Charlotte, Humbert viaja pelos Estados Unidos com Dolores, acontecimento através do qual nos é também apresentada a sociedade estadunidense de meados do século XX. Ambos se estabelecem em Beardsley, New England, onde Humbert inscreve Dolores numa escola para raparigas, controlando todas as suas ações. Depois de a jovem expressar que gostaria de fazer uma nova viagem. Mas desta vez, mais paranoico, Humbert sente que ela esconde alguma coisa, e sente-se perseguido ao longo de toda a viagem. Estão lançados dessa forma os dados dos inevitáveis destinos de Humbert e de Dolores, em toda a absurdez da sua tragédia. 
    A interpretação do teor do romance é ambígua e divide críticos e estudiosos desde a sua publicação. Se há quem veja uma tragédia romântica, há quem veja uma comédia trágica na história da relação entre Humbert e Lolita. Outra interpretação com que nos deparámos, muito interessante, é a da perda da inocência face à tirania, nomeadamente da infância do próprio autor em relação à tirania czarista e, posteriormente, bolchevique, na sua Rússia-natal. Na nossa amadora e modesta opinião, Lolita é uma sátira modernista, ácida e mordaz, ao conceito de história de amor típica da cultura de entretenimento que caracterizava, e ainda caracteriza, as artes produzidas nos Estados Unidos. Através de trocadilhos, ambiguidades e outros jogos de palavras, o teor do romance revela-se perfeitamente. A sociedade e cultura americanas são igualmente alvo do olhar satírico de Nabokov, principalmente a mesquinhez dos meios pequenos e a frivolidade dos meios maiores. Humbert é um narrador não confiável, e essa característica é essencial para perceber a natureza dos acontecimentos, principalmente no que toca a "avanços" e a "provocações" de Dolores. Nabokov declarou em diversas entrevistas que escreveu Humbert para ser um personagem odioso, e esse objetivo ele consegue magistralmente: não há empatia possível com o narrador de Lolita. O facto de demasiadas referências a este romance declararem que aos poucos vamos empatizando com Humbert revelam bem o tipo de mentalidade que Nabokov visava parodiar. A narrativa de Humbert absorve tudo o que sejam os sentimentos e as aspirações dos outros - nós nunca chegamos a saber quem é, de facto, Dolores Haze, apenas a Lolita que Humbert nos oferece. Esta questão é propositada, mais uma vez para aumentar os efeitos da paródia e enfatizar a infiabilidade do narrador. Algumas descrições de Nabokov, assentes em paradoxos e antíteses, revelam um surrealismo que contribui para o delírio que é a obsessão de Humbert, enquanto outras recorrem a diminutivos e trocadilhos para destacar o ridículo e, dessa forma, enfatizar a sátira. 
   Lolita é sem sombra de dúvida um romance a ler e a apreciar enquanto a paródia que é de um certo tipo de mentalidade e de mania que ainda hoje por aí rastejam, principalmente na sociedade estadunidense. 
 
Citações:
 
"Mas notei, com um espasmo de feroz repugnância, que o ex-conselheiro do czar não puxara o autoclismo depois de esvaziar completamente a bexiga. Aquela solene poça de urina alheia, na qual se desintegrava uma beata mole e acastanhada, pareceu-me um supremo insulto, e olhei, como louco, à minha volta, à procura de uma arma. Na realidade, creio que foi apenas um gesto de cortesia burguesa (talvez com um ressaibo oriental) que levou o bom do coronel (Maximovich! Lembrei-me, de repente, do seu nome), pessoa muito formal, como todos eles são, a abafar a necessidade íntima num silêncio cheio de decoro, para não realçar o pequeno tamanho do domicílio do seu anfitrião com o turbilhão de uma grande cascata a seguir ao seu esguichozinho discreto."
 
"No meio do labiríntico padrão (mulher apressada, rua escorregadia, o raio de um cão, rua íngreme, carro grande e idiota ao volante), conseguia vislumbrar vagamente a minha vil contribuição. Se, como um estúpido – ou um génio de intuição –, não tivesse conservado aquele diário, os vapores produzidos pela cólera vingadora e pela profunda humilhação não teriam cegado Charlotte, na sua corrida para o marco do correio. Mas, mesmo que a tivessem cegado, nada teria acontecido se o Destino meticuloso, esse fantasma sincronizador, não misturasse no seu alambique o automóvel e o cão e o sol e a sombra e a humidade e o fraco e o forte e a pedra."
 
"A Rubinov’s Jewellery Company exibia na montra uma coleção de diamantes artificiais, reflectidos num espelho vermelho. Um relógio verde, iluminado, parecia flutuar nas ondas de roupa da Lavandaria Jiffy Jeff. Do outro lado da rua, uma garagem dizia, no sono, lubricidade genuflexão, mas emendava-se logo para Lubrificação Gulflex. Um avião, também cravejado de jóias Rubinov, passou, a roncar, no céu de veludo."
 
 
Pontuação: 6.9/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos