sábado, 19 de agosto de 2023

"Aprender a Rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares

   "O pai agarrou nele e levou-o ao quarto de uma empregada, a mais nova e a mais bonita da casa" era, até à publicação de O Osso do Meio, a última primeira frase de O Reino. Ainda vamos descobrir o que o novo volume final tem para oferecer, mas este continua, a nosso ver, o melhor livro da tetralogia original. 
   A história de Lenz Buchmann não é uma história fácil, mas Lenz Buchmann também não é um protagonista qualquer. Fruto de uma educação militarista, Lenz, médico muito competente, tem ideias muito concretas sobre o que o rodeia. Lenz Buchmann vê-se como um homem forte, o único homem forte capaz de enfrentar os desafios da natureza. Depois da apresentação da ideologia objetiva, fria e pragmática de Buchmann, somos lançados para a primeira parte do arco principal desta narrativa: a rápida e eficaz ascensão de Lenz Buchmann no Partido. A sua participação ativa no Partido deve-se às ideias que o moldam, e à vontade de as aplicar na Cidade, que considera necessitada da sua intervenção. É durante a sua ascensão que Lenz Buchmann cria uma relação íntima, mas não sexual, com a sua secretária, Julia Liegnitz. O seu sucesso a chegar a vice-presidente do Partido é interrompido por um acontecimento terrível, porque inesperado, para o homem forte que se colocava no centro de tudo, e a força da mão que segurava o bisturi começa a esmorecer. 
   Os temas que marcam a pentalogia O Reino estão, mais uma vez, bem patentes neste volume. Tal como em Klaus Klump e em Joseph Walser, as questões suscitadas pelo narrador gravitam em torno de um homem: Lenz Buchmann. Lenz Buchmann é um dos protagonistas mais fascinantes de Gonçalo M. Tavares, pois não tem nenhuma característica que nos gere empatia, apenas admiração, talvez algum medo inclusive, pois todos nós sabemos muito bem o que acontece quando homens como Buchmann chegam ao poder. Esse é um dos pontos mais interessantes em que o autor toca, a impiedade de um homem pragmático quando entre si e um objetivo se colocam questões tidas como secundárias, e como um homem com as características de Lenz Buchmann constitui sempre um perigo para a sociedade. O acontecimento definitivo que atinge Lenz Buchmann na segunda parte do romance não deixa de ter um tom de justiça poética, uma vez que passamos grande parte da sua "era forte" a conhecer as suas visões perigosas e as suas ações impiedosas. E, no entanto, não deixamos de acompanhar com alguma empatia o desenrolar dos acontecimentos. A divisão tripartida do romance é muito bem conseguida, uma vez que, quase cientificamente, descreve o que anuncia. Aliás, é assim praticamente com todos os capítulos e subcapítulos, acrescentando a característica científica, e mesmo inventarial, da escrita de Gonçalo M. Tavares. Mais uma vez, a coerência interna de O Reino nota-se em diversos pormenores. Sabemos que este romance se passa no período depois da guerra, havendo uma cena em que é Lenz Buchmann quem diz a Joseph Walser que se comporte, quando este foi parar ao hospital depois do acidente com a "sua" máquina. Outro pormenor curioso é uma breve referência ao Hospício Georg Rosenberg. À primeira vista, o título e o conteúdo não se ligam. Mas quem lê Gonçalo M. Tavares na globalidade, sabe que "Rezar" e Técnica" têm codificações diferentes, muito particulares ao universo tavariano, que descrevem na perfeição as sequências de acontecimentos que se sucedem neste romance. Com justiça, Aprender a Rezar na Era da Técnica recebeu o Prix du Meilleur Livre Étranger 2010, que galardoou no passado alguns futuros detentores do Prémio Nobel. No entanto, não recebeu muitos galardões - nenhum português, por exemplo -, o que até hoje não deixa de causar estranheza, pois, na nossa opinião, estamos perante o apogeu de O Reino e um dos melhores trabalhos de Gonçalo M. Tavares. 
   Um livro de leitura obrigatória, muito forte por si só, mas exponencialmente melhor com o contexto da pentalogia em que se insere. 
 
Citações: 
 
"Estas coisas pesam; e a partir de certa altura é impossível levantar este peso, tirá-lo dali, do seu sítio. A medicina não tem um guindaste à sua disposição. Trata-se realmente de um processo de engenharia, mas a engenharia não evoluiu tão rapidamente no domínio das coisas pequenas quanto evoluiu no domínio das coisas grandes. Os bichos minúsculos ainda causam mais problemas que um bisonte; ainda não encontrámos a pinça certa, entende?"
 
"Lenz lembrou-se até desse conflito básico entre o lápis e a borracha: a borracha que apaga o que o lápis inscreveu no exterior do mundo, atirando de novo uma palavra ou um desenho para o mundo do não explícito, do escondido, do que ainda não existe; e o lápis que depois, pela segunda vez, volta à carga, tentando forçar a existência – melhor: a re-existência – de um conjunto de traços no papel."
 
"Os somatórios eram operações fracas quando comparados com o que se tornava visível no momento em que se escutava, por exemplo, o nome Buchmann. O alfabeto e a contabilidade não eram capazes de segurar essa força que uma única palavra encerrava, pois o fenómeno era idêntico a um armazenamento, a uma concentração sucessiva de experiências que ocupavam sempre o mesmo espaço (se assim pensarmos um nome: um espaço, um conjunto de metros quadrados). O nome tornava-se portanto cada vez mais denso."
 
 
Pontuação: 9.8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos