terça-feira, 27 de junho de 2023

"A Máquina de Joseph Walser", de Gonçalo M. Tavares

   "Era um homem estranho e a sua mulher não pôde deixar de rir ao escutá-lo." abre o segundo romance de O Reino. 
   Joseph Walser é um homem comum, casado com Margha Walser e trabalhador numa fábrica, onde opera a "sua" máquina com todo o esmero e concentração. Para além da sua máquina, Walser atravessa a vida quase alienado dos eventos exteriores. Apesar disso, junta orgulhosamente no seu escritório, apenas acessível por si, a sua coleção de pequenas peças metálicas. No trabalho, Walser é muitas vezes abordado por Klober Muller, encarregado que transmite sempre as suas ideias, quase como que discursando para uma plateia. Aos sábados, Walser frequenta a casa de Fluszt M., onde eles e outros três colegas de trabalho jogam aos dados a dinheiro. Enquanto Walser descobre que Margha o trai com Klober Muller, chega a guerra à cidade onde habitam estes personagens, e consigo traz todas as mudanças de rotinas e de perspetivas que as guerras trazem consigo. Mas tudo se passa à parte de Joseph Walser, que encontra consolo nas rotinas de operar a "sua" máquina e de jogar aos dados todos os sábados, e na sua coleção. No entanto, um azar no maneio da "sua" máquina deforma-lhe a mão direita, amputando-o do seu dedo indicador. Walser não encontra dificuldades em adaptar-se ao seu novo normal, mas à sua volta as coisas mudam. Fluszt M. junta-se à resistência. Klober continua os seus monólogos. E a máquina de Joseph Walser prossegue, operada por outro funcionário. 
   A primeira nota vai para reafirmar o meu fascínio pela capa minimalista, toda preta, das primeiras edições dos quatro romances. A capa cumpre maravilhosamente um dos objetivos de Gonçalo M. Tavares com os romances de O Reino: a prosa despida dos seus artifícios, direta e descarnada perante o leitor. Aqui, reiteramos a prosa quase científica e objetiva de Tavares, que deixa o conteúdo "real" do que está a ser escrito "à mostra", que, contudo, não deixa de recorrer a recursos como animismos, oxímoros, hipálages e outros. Mergulhados no conteúdo, descobrimos que Joseph Walser habita na mesma cidade de Klaus Klump, facto que atribui consistência interna à série: as pistas são a empresa em que Walser trabalha pertencer a Leo Vast e o líder dos militares ser Ortho, assim como a presença da guerra e da invasão. Brevemente, Joseph Walser interage com  Hinnerk Obst, personagem relevante no livro seguinte, que mais uma vez interliga o espaço dos romances d'O Reino. Tal como em Um Homem: Klaus Klump, estamos perante o ser humano e a sua complicada relação com a Guerra, mas de uma perspetiva diferente. Klaus Klump participou ativamente na guerra, estando inclusivamente preso; Joseph Walser é alheio a tudo, apenas focado no essencial: a sua máquina e a sua coleção. Tudo o resto é acessório e limita-se a acontecer-lhe. Este alheamento de Walser é a reflexão deste romance: o alheamento, e mesmo desinteresse, do humano perante a guerra, e outras formas expectáveis de Mal. Walser apenas interfere microscopicamente nos assuntos da vida, e vive bem dessa forma. 
   A Máquina de Joseph Walser continua de forma consistente a obra prima iniciada em Um Homem: Klaus Klump
 
Citações: 
 
"A eclosão da guerra foi recebida como se não fosse uma novidade, mas uma repetição. A sensação de continuidade no tempo era para Walser algo, de facto, indestrutível, apesar dos novos barulhos que surgiam no céu, anunciando máquinas e ódios aéreos. E nada é interrompido. Nada de fundamental. O indivíduo não se interrompia na guerra, não havia tempos de interrupção: é sempre o Homem, não há outro, não há um 2.º Homem, há apenas um, o 1.º; e é esse – que é o mesmo de há séculos atrás, e será o mesmo no futuro – é esse que tudo atravessa com enfado, até a guerra. Monotonia e desinteresse."
 
"Com os dados na mão direita, ele suspendia a respiração. Nada de fundamental se decidia naquele gesto, mas tal só se tornava evidente depois dos dados serem jogados e se tornarem visíveis os seus efeitos; efeitos significativos naquele momento, é certo, mas pouco relevantes quando se alargava o tempo: insignificantes numa semana da vida de Walser, e quase inexistentes quando se pesava um ano inteiro. […] Um instante antes dos dados saírem da sua mão a sensação era a de que ‘tudo pode mudar’. Mas os dados saíam e nada mudava de concreto, após o instante de júbilo ou desilusão relativamente à face do dado que ficava para cima: ‘Nada mudou’ era o que exclamaria se os seus pensamentos se tornassem subitamente visíveis."
 
"Ao olhar de novo para a peça metálica sentiu que estava a interferir na guerra. Uma arma não pode disparar porque eu tenho aqui uma das suas partes! Sentiu-se pela primeira vez integrado; a participar. Mais: sentia que ela – a guerra – era afinal importante para si. Ele, Joseph Walser, estava a tocar, com a sua mão esquerda completa e com a mão direita a que faltava um dedo – o dedo indicador – numa arma; ele, naquele momento, nas suas mãos, possuía uma peça indispensável ao conflito. Tinha interrompido a guerra, ele."
 
 
Pontuação: 8.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos