segunda-feira, 19 de junho de 2023

"Um Homem: Klaus Klump", de Gonçalo M. Tavares

   "A bandeira de um país é um helicóptero: é necessária gasolina para manter a bandeira no ar; a bandeira não é de pano mas de metal: abana menos ao vento, frente à natureza." Um Homem: Klaus Klump é o primeiro romance da pentalogia O Reino, cuja leitura inauguramos. 
   Klaus Klump é um editor de livros à data em que o país onde habita entra em guerra, sendo invadido por tanques inimigos. Nos primeiros tempos da invasão, Klaus conhece Johana, tornando-se ambos amantes. Klaus pertence à resistência que se opõe à invasão, que é forçada a fugir para os bosques que circundam a cidade. Klaus conhece Herthe, sua conterrânea, que o convida para a sua cama. No entanto, Klaus é detido e preso por soldados inimigos. Paralelamente, Herthe desposa Ortho, oficial do exército invasor, e celebram o seu casamento. Um atentado planeado por Clako, irmão de Herthe, não corre exatamente como este previa, e este acontecimento deixará as suas sequelas para ambos os irmãos. Com a ajuda de Xalak, outro preso, Klaus foge da prisão e, antes de regressar à resistência, reencontra-se com Johana pela última vez. Johana sofrerá pouco depois um surto e será internada. Herthe casa-se com Leo Vast, industrial milionário, com quem têm um filho que nasce no dia do final da guerra. Os Leo Vast e os Klump, em tempos de paz, juntam-se em torno de um grande negócio.
   Os romances integrantes d'O Reino foram chamados de "livros pretos", nas suas primeiras edições, não só pelas suas capas pretas apenas com os títulos e o autor visíveis, mas principalmente pelos temas fundamentais que os unem: a relação entre o Homem e a sua própria Escuridão. A escrita de Gonçalo M. Tavares é mesmerizante: pejada de uma reflexão quase ensaística, mas despojada de "artifícios" retóricos - uma escrita focada na mensagem e não tanto na decoração, como um texto científico. Mas o conteúdo não é nada científico. Essa antítese gera uma escrita cativante e fluída, e igualmente profundíssima. Em Um Homem: Klaus Klump, o foco é a Guerra e a Maldade, individual e coletiva, que com ela é desbloqueada. Mas essa maldade é orgânica, intrínseca ao ser humano, no seu instinto animalesco de sobrevivência. A banalização do Mal, tema arendtiano por excelência, é também aflorada nas reflexões do autor, nomeadamente como a guerra e a invasão de uma cidade geram a aceitação da crueldade como quotidiano, quase justificada pela situação bélica. A relação da loucura com a lógica também é um tema transversal desta pentalogia, e neste primeiro romance a loucura gera visões de mundo dentro de uma lógica inatacável do ponto de vista argumentativa, científica mesmo. Outra temática integrante e integral é a Máquina e o seu papel de nova natureza, de nova divindade, na sociedade humana. O percurso de Klaus Klump no decorrer da narrativa revela bem como, em situações de sobrevivência, a moral é acessória ou ausente, tendo este sido resistente, prisioneiro e "vencedor" entre o início e o final da guerra, apenas navegando as correntes que se lhe ofereciam. Klaus Klump é um protagonista tavariano por excelência: os protagonistas de O Reino são moralmente ambíguos ou neutros, na melhor das hipóteses, o que gera mais uma vez uma sensação de antítese que inquieta, contribuindo para as tonalidades dos romances. Apesar da frugalidade de Tavares no uso de recursos estilísticos, as imagens e as ideias expostas pelo autor são feitas através de hipálages, oxímoros e paradoxos, animismos e personificações, características particulares do universo tavariano. 
   Um Homem: Klaus Klump é um início potente de uma obra prima da literatura portuguesa, que iremos ler e descobrir com todo o gosto (mesmo os romances que já lemos: sabemos que iremos retirar mundos diferentes com a releitura). 

Citações:
 
"O coração não é só uma víscera tenra. Há um sistema moral algures na parte mole do corpo. E um sistema é uma coisa grossa, que permanece fortemente no lugar: uma pedra. Um cubículo de metal."
 
"Klaus sentia-se entrado na noite mais individual, na noite com o seu nome. Aquela não era uma noite geral: nem todos os homens vivos tinham a sua parte física instalada na matéria. A sensação de que os objectos e a terra perdem luz para dentro, como se cada coisa tivesse um ralo por onde caísse, não a água, mas a luz, que também escorre."
 
"De noite os instrumentos que curam têm os mesmos contornos que os instrumentos que matam. Só de muito perto se percebe que certa lâmina pertence ao mundo bom dos objectos, quer isso exista ou não. A técnica e a forma de cada coisa não são elementos com quem possas fazer tranquilamente amizade. Uma lâmina tem a maldade que a sua velocidade tem. É tudo uma questão de velocidade, de acelerações. A lâmina boa, se entrar rapidamente, fará estragos no corpo."
 
 
Pontuação: 8.5/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

Sem comentários:

Enviar um comentário