sexta-feira, 16 de junho de 2023

"As Primeiras Coisas", de Bruno Vieira Amaral

   "Quando, em finais dos anos noventa, voltei costas ao Bairro Amélia, com os seus estendais de gente mórbida, a banda sonora incessante das suas misérias, nunca pensei que a vida me devolveria ao ponto de partida." Assim abre As Primeiras Coisas, romance galardoado, entre outros, com o Prémio Literário José Saramago 2015, o Prémio Fernando Namora 2014 e o Prémio PEN Clube Português de Narrativa 2014.
     O narrador do romance apresenta-se a nós enquanto antigo habitante do Bairro Amélia, bairro fictício, mas muito real, situado em Setúbal, ao qual regressa numa encruzilhada difícil da sua vida. Voltando a percorrer as ruas onde cresceu, começa a rememorar episódios, personagens e sombras do passado do Bairro Amélia, que também é o seu. Episódios como o homicídio de Joãozinho Treme-Treme, o desaparecimento de Vera, a chegada dos retornados ou a Grande Pintura de 1990, ação de renovação das fachadas de alguns prédios degradados. Personagens como o poeta vagabundo Fion, o velho aventureiro Abel, ou o líder criminoso Lito. Sombras como Manuel Morais, um fantasma, Fernando T., assassinado, ou Roberto, pai do narrador. O narrador é acompanhado nas suas reminiscências por Virgílio, que acompanha o seu caminho físico e mental pelo passado e pelo presente, que existem em simultâneo nas divagações do narrador. 
   Apesar de uma quantidade abundante de personagens, o verdadeiro protagonista de As Primeiras Coisas é o Bairro Amélia. Feito personagem, o Bairro Amélia pulsa de vida, de dinamismo, de aspirações e de desistências, como qualquer bairro do género, mais empobrecido. Vemos e ouvimos as pessoas, os cafés, os latidos dos cães e os gritos das crianças, cheiramos os aromas aos cozinhados e à terra molhada de tardes estivais chuvosas através das descrições marcadamente visuais do narrador, extraídas das próprias memórias do autor, oriundo ele mesmo de um bairro semelhante, em tudo inspirador do bairro fictício. O passado e o presente existem em simultâneo no Bairro Amélia, povoado pelo narrador e pelos habitantes vivos e pelos fantasmas que escrevem a memória do bairro. Sente-se uma nostalgia amarga por parte do narrador, dividido entre as falta de perspetivas que o bairro parecia impor a todos quanto nele cresciam e a vida para lá do mesmo, viva e se limites. Os fantasmas que resultam da existência simultânea dos dois tempos são um ponto muito forte do romance, construído com estes como epicentro: todas as histórias parecem confluir nos fantasmas de Joãozinho Treme-Treme, Vera, Manuel Morais, Roberto: os pilares do narrador. O narrador, em conjunto com Virgílio, chega à conclusão que ele próprio é tudo isso: é a ausência do pai, a comoção do bairro com os homicídios, o desaparecimento de infâncias pré-condenadas. E nós somos sem dúvida de onde viemos e com quem interagimos. Virgílio é outro aspeto muito interessante do romance: tal como o narrador de Dante Alighieri em A Divina Comédia, o narrador de Bruno Vieira Amaral é guiado por Virgílio, enquanto manifestação das suas memórias face às realidades em que se veem. Outro aspeto, este formal, muito interessante deste romance é o uso de notas de rodapé para complementar as indagações ou para sustentar as informações do narrador, contribuindo para a dispersão de murmúrios que compõem as rememorações do narrador.
   Um livro para ser apreciado.
 
Citações:
 
"Sei-o porque nem o voluntarismo nem a coragem física de Ana Mendes, grandessíssima cabra, me pouparam a essa sessão constrangedora entre o masoquismo e a sociologia do trabalho, que decorreu a tempo e horas e com todas as palavras, mesmo as que deveriam ser sinceras, a sucederem-se com previsibilidade burocrática, como se a gorda dos recursos humanos, com toda a sua cetácea humanidade, e eu, com o meu desespero mudo e imbecil, estivéssemos a seguir com denodo um guião idiota"
 
"A verdade dos factos, conceito que nem os juristas usam sem que um sorriso lhes traia o pensamento oculto, é a camada mais desinteressante da existência, a coutada vitalícia das pessoas sem imaginação. Os pragmáticos que vivem obcecados em apurar a verdade dos factos, em determinar circunstâncias, em patrulhar a realidade – virtudes louváveis em investigadores policiais – são incapazes de conceber alternativas ao que lhes entra pelos olhos e de, em consequência, viver nos interstícios felizes do improvável.”
 
"Ouve, Delfino. Foram sobreviventes que o disseram, um espetáculo maravilhoso. Mas alguns dos mortos também sobreviveram. No instante em que os corpos foram vaporizados, o calor impossível de suportar desenhou silhuetas eternas nas paredes. Pereceram, mas as suas sombras ficaram para sempre, Delfino. Consegues alcançar a beleza mortal de tudo isto? Tinhas razão. Entre nós e as palavras há metal fundente, um calor nuclear que derrete tudo, matéria viva e letal."
 
 
Pontuação: 8.9/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

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