domingo, 30 de agosto de 2020

"Os Livros que Devoraram o meu Pai", de Afonso Cruz

   Os Livros que Devoraram o meu Pai é uma das várias incursões de Afonso Cruz na literatura infanto-juvenil, meio onde o autor também produz obras marcantes. Esta é indubitavelmente uma delas.
    Quem nos conta a história é Elias Bonfim. Começa por nos apresentar o seu pai, Vivaldo Bonfim, escriturário entediado com um mundo do trabalho sem literatura. Um dia, Vivaldo desaparece dentro das páginas de A Ilha do Dr. Moreau, de H.G. Wells. Então, Elias, recebendo da sua avó acesso ao sótão onde o seu pai guardava os seus livros, decide encetar numa busca pelo seu pai, através da leitura dos livros do seu pai. Paralelamente, conta a sua própria vivência na escola, com o seu amigo Bombo, assim chamado por ser muito gordo, e pela sua paixão por Beatriz, por quem Bombo também sente uma paixão, e da sua dificuldade em viver num mundo em que coisas simples como chegar a horas ao jantar se sobrepõem à leitura e à literatura. Nas suas leituras são vários os diálogos que Elias tem com diversos personagens das diversas histórias que lê, em busca do seu pai, personagens como Mr. Hyde (de O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde), Mr. Prendick (de A Ilha do Dr. Moreau) ou Raskolnikov (de Crime e Castigo). 
   Toda a história é uma grande viagem pelo mundo da literatura e pelo amor pela leitura. Como nos seus romances, a escrita de Afonso Cruz é muito simplista mas carregada de filosofia e humanismo. As indagações de Elias Bonfim sobre a leitura, o amor, as relações familiares, o bem e o lado escondido do ser humano complementam a história que ele narra sobre as suas incursões dentro dos livros do seu pai. Os personagens literários com quem Elias dialoga são representações dos temas fundamentais que o seu relato aborda. Apesar de este livro de Afonso Cruz não possuir das suas belíssimas ilustrações, não deixa de ter um mínimo da sua característica plasticidade artística. Nomeadamente, o uso de um tamanho de letra maior em frases esporádicas para enfatizar ou destacar o que está a ser descrito, para além de uma página onde aparecem diversos nomes de grandes escritores na vertical, como se estivéssemos a ver efetivamente a estante de Elias. Pontuam também a história várias parábolas chinesas, quer contadas por Bombo, que as aprecia muito, quer introduzidas por um dos diversos personagens da literatura que povoam este livro, sobre os temas fundamentais abordados pela narração. Resta dizer que este livro foi vencedor do Prémio Literário Maria Rosa Colaço para literatura infanto-juvenil em 2009.
   Trata-se de um livro juvenil muito interessante que nos apaixona pela leitura através da sua viagem por alguns clássicos intemporais aliada a situações tematicamente correspondentes da vida real. É um livro recomendado para qualquer jovem leitor que esteja a descobrir o maravilhoso mundo da leitura.
 
Citações:
"O meu pai só pensava em livros (livros e mais livros!), mas a vida não era da mesma opinião, a vida dele pensava noutras coisas, andava distraída, e ele teve de se empregar. A vida, muitas vezes, não tem consideração nenhuma por aquilo de que gostamos."
"Atravessar a Rússia significa percorrer onze fusos horários. Quando numa ponta do país é de dia, na outra é de noite. A Rússia é como a alma humana. Se tem um lado luminosos, é porque a outra ponta está no escuro. Somos todos feitos desta estranha mistura de fusos horários."
"Quando vemos uma bela flor num deserto, admiramo-la, mas quando passamos a vida rodeados de belas flores, não reparamos. Perdem todo o significado da individualidade, de ser único. É o preço da quantidade e, se quer saber, caro Bonfim, é o mal dos tempos. Tudo é muito, vivemos nesse reino de quantidades, rodeados de coisas para que nos esqueçamos de nós mesmos e do que se passa cá dentro."
 
 
Pontuação: 7.4/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

sábado, 29 de agosto de 2020

"A Jangada de Pedra", de José Saramago

  Como se verificou com O Ano da Morte de Ricardo Reis, este romance não é particularmente memorável, não deixando de configurar uma grande obra por um autor que não desilude.
   O pano de fundo deste romance é uma Península Ibérica que se separa do restante continente europeu pelos Pirenéus, começando assim uma viagem pelo Atlântico fora "em busca" de um lugar. Começa a história pelo surgimento de fendas ao longo de toda a cordilheira pirenaica, que, apesar de intrigarem os cientistas, não dão azo a preocupação por parte das autoridades. Nas cidades fronteiriças, vários sinais vão surgindo de que se prepara alguma coisa incomum, nomeadamente na cidade de Cerbère, onde todos os cães, até então calados, começaram a ladrar. No início de tudo isto está o ato de Joana Carda, uma das protagonistas, de desenhar no chão um risco com uma vara de negrilho, estabelecendo-se assim uma causalidade entre este ato e os factos descritos. Separando-se definitivamente a Península da Europa, somos introduzidos a Joaquim Sassa, que atirou uma pedra de tamanho impossível para longe no mar, José Anaiço, que é perseguido para todo o lado por um enorme bando de estorninhos, e Pedro Orce, que afirma sentir a terra tremer debaixo dos seus pés, mesmo que mais ninguém o sinta, os primeiros em Portugal e o segundo em Espanha. Ouvindo falar de um homem perseguido por um bando de estorninhos, Joaquim Sassa decide procurá-lo, viajando no seu carro, Dois Cavalos. Ambos partem então em busca de Pedro Orce. Os três viajam juntos, apenas impelidos pela sensação de que assim tem de ser, que os acontecimentos bizarros que lhes aconteceram estão ligados à separação da Península. Em Lisboa, encontram Joana Carda, que lhes relata o seu episódio com a vara de negrilho, juntando-se então ao grupo, para lhes mostrar o risco que desenhara no chão, passando ela e José Anaiço a estar juntos. Surgindo um cão escuro com um fio de linho azul na boca no local onde se encontra o risco, que eles têm a sensação de querer que o sigam, este guia-os até a casa de Maria Guavaira, viúva, a quem se liga Joaquim Sassa através do fio de linho azul que o cão transportava. Partem então os cinco, mais o cão e dois cavalos, que puxam a galera que os transporta, para o "fim do mundo", os Pirenéus, onde sentem que devem rumar e onde desejam ver o mar do alto das montanhas. Pelo meio, vamos observando a resposta da Europa e do resto do mundo a um insólito como este, assim como ás reações dos portugueses e dos espanhóis à situação em que se encontram. Seguimos também as viagens internas dos protagonistas à medida que vão efetuando a sua viagem física. 
   Este romance de José Saramago é saído de uma das suas convicções mais fortes, que é a identidade ibérica que devia unir os dois povos da Península. A metáfora de a Península Ibérica se separar do resto da Europa e de, por força disso, ter de trabalhar em conjunto para minimizar as implicações de tal acontecimento é mais uma prova do génio efabulador de Saramago, juntando-se a uma grande galeria de metáforas excecionais criadas pelo Nobel português. A história que vai acontecendo quase se subalterniza à mensagem que o autor quer passar, parecendo que a viagem dos protagonistas é apenas uma desculpa para poder encetar na sua análise. O marcante sarcasmo do autor não deixa de se revelar neste romance, como se revela nos outros, assim como a sua utilização liberal da pontuação e a marcante oralidade da sua narração, que são pontos fulcrais da obra saramaguiana. No entanto, fora estas vertentes essenciais, este romance não tem, verdadeiramente, muito mais que seja marcante. O que é verdadeiramente marcante neste romance é a descrição dos recantos da península Ibérica por onde passam os protagonistas e a metáfora principal do autor, da não pertença cultural da Península a uma identidade europeia, antes a uma identidade ibérica conjunta. Outro ponto que é sempre favorável é o vernáculo popular empregue por Saramago nas suas narrações, o que vai, claro, de encontro ao teor oral da sua narrativa. Há também umas referências subtis a O Ano da Morte de Ricardo Reis, romance cronologicamente anterior a este, que geram um pequeno meio sorriso a quem o leu e as descortina na narrativa. 
   Reiterando o que escrevi sobre o romance anterior de Saramago, trata-se aqui de um romance saramaguiano, lúcido e que merece ser lido e apreciado, apesar dos pontos desfavoráveis que nele encontrei. 
 
Citações:
"Um dia que já lá vai, D. João o Segundo, nosso rei, perfeito de cognome e a meu ver humorista perfeito, deu a certo fidalgo uma ilha imaginária, diga-me você se sabe doutro país onde pudesse ter acontecido uma história como esta, E o fidalgo, que fez o fidalgo, foi-se ao mar à procura dela, gostaria bem que me dissessem como se pode encontrar uma ilha imaginária, A tanto não chega a minha ciência, mas esta outra ilha, a ibérica, que era península e deixou de o ser, vejo-a eu como se, com humor igual, tivesse decidido meter-se ao mar à procura dos homens imaginários"
"Desesperado, um sábio norte-americano, e dos ilustres, foi ao extremo de proclamar no convés do navio hidrográfico, contra os ventos e os horizontes, Declaro que é impossível que a península esteja a mover-se, mas um italiano, ainda que muito menos sábio, porém reforçado pelo precedente histórico e científico, murmurou, mas não tão baixo que o não ouvisse aquele providencial ser que tudo escuta, E pur si muove."
"Mas aproveitam, diriam, como aconselhou o poeta, Carpe diem, o mérito destas velhas citações latinas está em conterem um mundo de significações segundas e terceiras, sem contar com as latentes e indefinidas, que quando a gente vai a traduzir, Goza a vida, por exemplo, fica uma coisinha frouxa, insossa, que não merece sequer o esforço de a tentarmos. Por isso insistimos em dizer, Carpe diem, e sentimo-nos como deuses que tivessem decidido não ser eternos para poderem, no exacto sentido da expressão, aproveitar o tempo."
 
 
Pontuação: 6.8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos