segunda-feira, 23 de outubro de 2023

"Nineteen Eighty-Four", de George Orwell

   "It was a bright cold day in April, and the clocks were striking thirteen". Assim começa um dos romances mais conhecidos da literatura global, o qual abre também a nossa iniciativa de, sempre que possível, lermos os livros na sua língua original, pois, por melhor que sejam as traduções, há sempre algo que se perde, e nada nos aproxima mais do autor do que entender sem limites o que este quis transmitir. 
   Winston Smith é um trabalhador do Ministério da Verdade numa cidade de Londres num futuro pós-Segunda Guerra Mundial no qual o Mundo se reorganizou em torno de três superestados emergentes da polarização da Guerra Fria. Neste futuro, tudo é controlado pelo Partido, que através de vigilância eletrónica, formatação social ( seja através de um forte culto de personalidade do seu líder, o Big Brother, seja através do estado de guerra perpétua com um dos outros superestados) e a prática de doublethink (conceito da ideologia do Partido que significa a capacidade de aceitar simultaneamente duas crenças mutuamente contraditórias como corretas), impõe a sua visão totalitária e discriminatória sobre milhões de pessoas. Neste contexto, Winston vive miseravelmente, frustrado por não conseguir expressar a imensa fúria para com o Partido e as suas garras. Após um romance arriscado e secreto com Julia, uma colega de trabalho, Winston acaba detido pelo Partido, altura em que as suas frustrações e as suas certezas enfrentarão a manipulação cirúrgica do Partido. 
   1984 é uma grande metáfora antiautoritária. Mais do que exclusivamente anticomunista ou antifascista, esta brilhante alegoria alerta-nos contra todos os autoritários e fundamentalistas que espreitam em todas as curvas, e que desejam impor as suas agendas antiliberais e desumanizantes. O funcionamento do Partido e do super-estado Oceania espelha uma distorção do modelo estalinista de sociedade que vigorava na União Soviética aquando da escrita do romance. Apesar de o romance se encontrar magistralmente escrito, quer na sua intenção alegórica, quer no desenlace do enredo, o que pretendemos saudar é a construção daquilo a que hoje em dia chamamos de orwelliano, não sem antes enaltecer a criatividade linguística de Geroge Orwell, expressada através de neologismos tão certeiros que exprimem com precisão os seus pensamentos e constatações. O que pretendemos então demonstrar brevemente é o valioso impacto que 1984, uma obra de ficção, teve no pensamento político contemporâneo. E começamos pelo conceito de doublethink, que assenta naquilo que é uma falácia lógica, mas que se tornou recorrente na linguagem política, que é melhor exemplificado através do mote do Partido: WAR IS PEACE, FREEDOM IS SLAVERY, IGNORANCE IS STRENGTH. Esta é a estratégia do Partido para eliminar do pensamento das pessoas as barreiras entre os conceitos de forma a que as ideias destas estejam constantemente em estado de simultânea mutação e incerteza. Um dos exemplos recorrentes de doublethink é o 2+2=5, uma reflexão sobre se a verdade existe objetivamente ou se tudo o que é percecionado como verdade não passa de uma consensualização, abrindo a possibilidade de, se o Partido decretar que dois mais dois é igual a cinco, se essa passa a ser a verdade de facto. 
   O doublethink é um dos conceitos-chave do Ingsoc (English Socialism), que é possibilitado através de outra das invenções mais geniais de Orwell: a newspeak. A newspeak é a linguagem oficial de Oceania, sendo a sua função a eliminação do pensamento crítico através da redução da linguagem aos conceitos funcionais necessários. Da newspeak emergem os conceitos que Orwell introduz, brilhantemente expressos em neologismos, para descrever como também a língua é imensamente relevante na construção da realidade e da verdade, como thoughtcrime, o crime de pensar em conceitos que vão contra o Partido como liberdade ou igualdade, ou blackwhite, que é a aceitação do que é descrito como verdade pelo Partido, independentemente dos factos (o exemplo no romance é a aceitação de que o preto é branco porque assim o determina o Partido). 
   Para além destes brilhantes conceitos, Orwell também encetou em suposições que acabariam por se concretizar, mais ou menos intensamente. O Ministério da Verdade (Ministry of Truth, Minitrue em newspeak), cuja função é precisamente o contrário, tem ecos nos delírios eleitorais dos apoiantes de Donald Trump ou nas manipulações tresloucadas dos factos que a Rússia ou a Coreia do Norte praticam, até ao pormenor do revisionismo e da  fabricação histórica perpetrada por estes estados, mas não só. O conceito de Thought Police (polícia do pensamento), embora institucional na visão de Orwell, encontra eco nos movimentos censórios do wokismo fundamentalista ou do conservadorismo evangélico, que entre retirar palavras problemáticas dos livros ou proibi-los simplesmente de serem lidos aproximam-se tenebrosamente da realidade distópica de 1984. A vigilância por via tecnológica é outro assunto em que a realidade veio dar razão a George Orwell, sendo um dos maiores problemas que enfrentamos enquanto sociedade global digital, principalmente quando escândalos como Cambridge Analytica revelam que as empresas exercem uma vigilância medonha através dos nossos aparelhos pessoais. Um exemplo do uso governamental da vigilância como descrito por Orwell é a videovigilância chinesa e o seu sistema de crédito social, que gera desigualdades com base na espionagem dos atos mais mundanos dos seus cidadãos, bastante literalmente exprimindo a máxima BIG BROTHER IS WATCHING YOU.
   Pedimos desculpa por esta resenha se ter transformado numa análise menos literária, mas os grandes méritos literários deste romance são também maioritariamente os seus méritos políticos e divinatórios. É, sem sombra de dúvida, um dos livros mais essenciais na vida de qualquer pessoa, principalmente numa realidade em que cada vez mais as suposições de George Orwell se vão concretizando assustadoramente, e em que a leitura deste livros nos pode, pelo menos, abrir os olhos ao que se está a passar e, com essa informação, contrariar esse futuro tenebroso que Orwell também tudo fez para evitar. 

Citações:

"The sacred principles of Ingsoc. Newspeak, doublethink, the mutability of the past. He felt as though he were wandering in the forests of the sea bottom, lost in a monstrous world where he himself was the monster. He was alone. The past was dead, the future was unimaginable. What certainty had he that a single human creature now living was on his side? And what way of knowing that the dominion of the Party would not endure for ever? Like an answer, the three slogans on the white face of the Ministry of Truth came back to him:
 
WAR IS PEACE
FREEDOM IS SLAVERY
IGNORANCE IS STRENGTH"
 
"His mind slid away into the labyrinthine world of doublethink. To know and not to know, to be conscious of complete truthfulness while telling carefully constructed lies, to hold simultaneously two opinions which cancelled out, knowing them to be contradictory and believing in both of them; to use logic against logic, to repudiate morality while laying claim to it, to believe that democracy was impossible and that the Party was the guardian of democracy; to forget whatever it was necessary to forget, then to draw it back into memory again at the moment when it was needed, and then promptly to forget it again: and above all, to apply the same process to the process itself."
 
"It was curious to think that the sky was the same for everybody, in Eurasia or Eastasia as well as here. And the people under the sky were also very much the same – everywhere, all over the world, hundreds of thousands of millions of people just like this, people ignorant of one another’s existence, held apart by walls of hatred and lies, and yet almost exactly the same – people who had never learned to think but who were storing up in their hearts and bellies and muscles the power that would one day overturn the world."
 
 
Pontuação: 10/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos