domingo, 22 de outubro de 2017

"O Assobiador", de Ondjaki

   Ondjaki é um autor pelo qual ganhei uma curiosidade recente, nomeadamente depois de ler alguns dos seus poemas, tão parecidos temática e semanticamente com a prosa de Mia Couto. E, apesar de ter sido uma leitura muito breve, fiquei curioso com este O Assobiador para continuar a minha leitura das obras deste autor angolano. A literatura lusófona não se resume, nem deve, apenas aos autores portugueses e brasileiros, engloba todo um conjunto de nações e culturas com um, ou vários, momentos do passado em comum. Não só acrescenta dinâmica ao falar/escrever português, como também dá a conhecer outra forma de ver um mundo através das mesmas lentes. É por essa razão que eu penso que a leitura é importante, ainda para mais aquela que me dá a conhecer a minha cultura e o efeito dela em outras. Introdução feita, adiante.
   Como se trata de um livro pequeno (novela), a história é breve. Certo dia, algo espanta o Padre de uma aldeia, um som encantador e sentido que preenche toda a igreja e atrai as pombas a ouvi-lo. Esse som é um assobio. Deste ponto de partida, a história desenvolve-se apresentando os vários personagens que povoam a aldeia e as suas histórias, prazeres e angústias pessoais. Todas estas personagens confluem para um final tão inesperado como curioso, que explora aquela grande ligação entre o sentimento humano e a música (nesta história, pelos lábios de um Assobiador anónimo).
   Como se trata de uma novela breve, um texto pequeno, pareceu-me breve a leitura desta obra, facto que contribui positivamente e negativamente. Positivamente porque me deixou curioso para explorar mais obras do autor; mas negativamente porque não pude sentir plenamente a escrita do autor. Tratando-se de uma obra inicial do autor, não posso deixar de referir a sua maturidade mascarada de ingenuidade; a sua escrita simples esconde atrás de si algo mais profundo, algo que se descobre com a leitura do livro.O que achei mais interessante no livro foi a forma brusca como o final quebra com toda a construção. É um final de facto estranho ao teor do resto da novela (pelo menos, pareceu-me), mas não completamente desligado do tema geral. O português com características próprias locais é também, não só neste livro, um ponto muito a favor das obras de autores lusófonos, pois permite ter um vislumbre de duas culturas unidas em palavras comuns, algo que me apraz imenso e me dá um prazer imenso de leitura. 
   Como referi, trata-se de um texto breve, pelo que nada  mais tenho a acrescentar. Os motivos que apresentei servem para convencer a ler obras de autores lusófonos. Por isso, recomendo a leitura desta novela, trata-se de um bom início na obra do autor.

Citações:
"Os olhos quase descaíam em choro mirando o sol subdividindo-se, ao fim da tarde, em cada gota dessa precipitação lentadinosa, faz conta o astro maior se fosse derretendo todos os dias um poucochinho mais."
"A cama, o quarto e o seu corpo exalavam o intenso perfume de sal que o mar usa há milénios, essa poética densidade dos ares a que chamam maresia."
"O efeito era espantosamente belo: ao tocar na asa, a gota de água misturificava-se nela, desfazendo-a, isto é, fazendo-a nascer-se num arco-íris alienígena e colorificamente indescritível, que se desintegrava antes de tocar o chão."


Pontuação: 6.5/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Suspensão da leitura de "2666"

Há livros que pela sua natureza requerem paciência na sua leitura, há histórias que pela sua densidade requerem pausas para se recuperar o fôlego. Posto isto, e porque "2666" está a consumir o meu tempo de leitura sem que desse tempo resulte alguma leitura efetivamente, suspendo assim a leitura que estou a fazer desta obra extremamente densa, até recuperar o fôlego e voltar a mergulhar no vastíssimo universo de Roberto Bolaño.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Releitura de "o remorso de baltazar serapião", de valter hugo mãe

   Ainda bem que existem as segundas oportunidades. Elas flexibilizam a noção e a ideia que tínhamos sobre algo, proporcionadas pelo nosso crescimento individual. E, nesta série de releituras que atualmente faço, houve algo que me surpreendeu ainda mais que a anterior: o facto de se pensar uma coisa sobre um livro e descobrir-se que se pensa outra quase completamente contrária. O livro em causa é o romance o remorso de baltazar serapião. Mais uma vez verifico que a leitura de Lobo Antunes e de Saramago é essencial para se compreender a geração literária de valter hugo mãe (a partir de agora grafado em maiúsculas). Esta segunda leitura permitiu-me, acima de tudo, perceber o quanto estava enganado sobre este romance. E ainda bem. Portanto, vejamos o que mudou. 
   A história poderia ser colocada em duas óticas, dois pontos, um principal e um(s) secundário(s). No plano principal temos o amor que baltazar serapião, chamado de sarga por causa da vaca de estimação da sua família, por ermesinda, chegando a casar com ela. No plano secundário temos as várias venturas e desventuras de baltazar e a sua família. Do meio destes planos sai um grito de revolta, uma chamada de atenção e uma denúncia de toda a violência de que a mulher sempre foi vítima por parte de uma mentalidade machista monstruosa. A história pode também ser dividida em dois momentos: um inicial que relata o quotidiano difícil mas também pacato dos sargas; um segundo momento em que baltazar e o seu irmão aldegundes partem em viagem e, por diversas razões, encontram todo o tipo de obstáculos e maldições ao seu sucesso. Entre estes eventos existem momentos chave que ajudam a história a progredir, como a morte da mãe de baltazar e a sua infindável suspeita da relação adúltera entre dom afonso, fidalgo proprietário do terreno onde trabalham os sargas, e a sua mulher ermesinda. 
   A história, confesso, é violenta. É contada através dos olhos de baltazar serapião, um homem comum da Idade Média, terrivelmente machista e violento nos seus modos. O protagonista não cria relação com o leitor, é repulsivo, mas é escrito para o ser, uma vez que o autor pretende exmplificar uma forma atrasada de ver o mundo que sempre dominou a sociedade, principalmente na Idade Média. As suas afirmações sobre o papel da mulher são terrivelmente retrógradas. Mas são-no para nós, sociedade (não tão) evoluída do século XXI, uma vez que na altura, esta era a visão preponderante (havia sempre os que discordavam, mas a esses regressaremos). Foi este o fator, na minha primeira leitura, que me causou maior perturbação, foi a crueza com que o assunto é tratado (magistralmente) por Valter Hugo Mãe. É, no dizer de alguns leitores, terapia de choque, expressão com a qual não podia estar mais de acordo: é terapia de choque para nos fazer refletir e, penso eu, colocarmo-nos uma questão - estaremos assim tão evoluídos quanto isso? A obra é magnífica em muitos aspetos. Referirei dois deles que, para mim, são os mais marcantes. A escrita e o simbolismo. Este romance pertence à tetralogia das minúsculas, que correspondem aos quatro primeiros romances do autor, peculiares por se encontrarem redigidas completamente em minúsculas. O caráter oralizante da escrita, iniciado em Saramago, está bem presente neste romance, uma vez que tudo está redigido em minúsculas, sem qualquer distinção entre diálogos de personagens ou outras mudanças (facto de que me queixei no passado). É exatamente o que Saramago iniciou, mas levado ao seu próximo passo. Ainda neste caráter oralizante, o jogo de português que o autor faz nesta obra é sublime. Valter Hugo Mãe recria um português medieval, sem o transcrever de facto, aventurando-se pela linguagem sem qualquer receio mas também sem perder o domínio desta. Este aspeto é brilhante, um dos mais brilhantes jogos de linguagem que tive o prazer de ler. Começo a perceber Saramago quando afirmou que este livro é um tsunami, "não no sentido destrutivo, mas no da força". O segundo aspeto que merece nota é o simbolismo impresso nas páginas deste livro, também de forma brilhante. Desde a vaca de estimação até à mulher queimada, muitos aspetos, personagens e eventos simbolizam, quer a violência a que a mulher foi historicamente sujeita, quer o seu raivoso grito de revolta contra essa mesma violência. Sem mais alongamentos, que o texto já se faz longo, o maior simbolismo está na mulher queimada, uma bruxa deformada que amaldiçoa baltazar e aldegundes para sempre (curiosamente, a mulher queimada é a única mulher no romance que eleva a sua voz acima do domínio machista. Todas as outras são tristemente apáticas e submissas, pateticamente escravizadas pela sua condição). Para mim, esta personagem simboliza tanto a raiva como o remorso. A raiva da voz das mulheres que se levanta contra a injustiça a que é sujeita e a penitência da maldade dos homens, que termina em remorso. A pista está no título do romance. Como pode uma obra chamar-se o remorso de um homem quando na história não há lugar ao remorso? A hipótese de redenção aberta pelo remorso de baltazar é representada pela sarga, que os guia para longe do mal que os acomete. 
   Portanto, resta-me apenas recomendar vivamente a leitura desta obra magnífica. Mais que isso, impor a sua leitura. No dizer de Saramago, tem "de ser lido, porque traz muito de novo e fertilizará a literatura." E também pedir penitência por não ter visto logo o valor de uma obra tão gigantesca na literatura portuguesa e, atrevo-me a dizer, europeia.

Citações:
"e em surdina me gritou que saísse, como me mandou calar para pedidos últimos, lamentos ou refilos que não queria conhecer. como fui a tentar levitar pés de silêncio chão fora até à rua da casa, chorando minhas mágoas ao ruído nenhum da manhã."
"sabe, senhor paulo, as mães são como lugares de onde deus chega. lugares onde deus está e a partir dos quais pode chegar até nós. porque só através delas nos encontramos aqui. e, por isso, não há mãe alguma que não mereça o céu."
"minha bela ermesinda, como estás. pé torto, mão para o ar, braço colado ao peito, outra mão nenhuma, olho só buraco e cabeça descarecada às peladas, altos e baixos a faltar redondez de cabeça comum."


Pontuação: 9.2/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

"2666", de Roberto Bolaño - Parte 1



   A obra 2666, de Roberto Bolaño, é um estrondoso sucesso entre a crítica literária, tendo recebido inúmeros prémios e trazido grande destaque ao seu autor na literatura de língua espanhola. Sendo um livro assustadoramente extenso, é uma obra monumental que desafia qualquer leitor aventureiro. Como estas férias me senti com vontade de aventura, decidi enveredar na leitura desta obra. Originalmente planeado para ser publicado em cinco volumes, este romance é chamado de obra maior de um autor com crescente relevo na literatura latino-americana. Sendo uma obra extensa, tratarei da sua análise de uma maneira diferente. Por isso, começando pelas duas primeiras partes, desejem-me sorte na leitura destas imensas (1030!) páginas.


A Parte dos Críticos


   Nesta parte somos introduzidos aos quatro seguidores da obra de Benno von Archimboldi, Jean-Claude Pelletier, Manuel Espinoza, Piero Morini e Liz Norton, e às suas visitas conjuntas a festivais de literatura europeia, enquanto autoridades no estudo da obra do autor. Paralelamente, estes embrenham-se em desvendar o segredo do anonimato de Archimboldi, tentando procurar por ele, seguindo pistas muito ténues na esperança de o conhecer um dia. Essa esperança, no entanto, vê-se gorada. No entanto, as suas questões pessoais são exploradas por cada um quase como que motivadas pela busca por Archimboldi. No final, a sua busca leva-os à cidade de Santa Teresa, no México, onde continuam sem conseguir localizar Archimboldi, mas chegam a conclusões sobre as suas vidas. 
   Esta primeira parte não revela muito do enredo geral de 2666, mas serve antes como um set up, uma preparação do cenário onde irá encaixar o resto da narrativa. São-nos introduzidos alguns personagens, locais e eventos que irão aparecer mais à frente na obra. Penso que é uma boa introdução ao estilo do romance, apesar de ser um pouco parada e extensa. Não obstante, o estilo de escrita é muito peculiar, com uma linguagem ao mesmo tempo acessível e erudita, com descrições ora da natureza circundante, ora do espaço psicológico, muito bem equilibradas. Tem também um tom filosófico subjacente, mas sem entrar em densidades excessivas que cansariam o leitor. Gosto especialmente como a importância da leitura é subtilmente mencionada no texto, sem ser muito diretamente, como se fosse uma mensagem milenar que não necessita de explicações ou apresentações.
   Para já, como já referi, trata-se de uma introdução ao universo de 2666, sendo ligeiramente desprovida de ação, mas cativante, mesmo assim. Espero uma grande experiência deste romance.

Citações:
"No pátio quadriculado chovia, o céu quadriculado parecia o esgar de um robô ou de um deus feito à nossa semelhança, na relva do parque as oblíquas gotas de chuva deslizavam para baixo, mas teria significado o mesmo se deslizassem para cima"
"Os vinte minutos iniciais tiveram um tom trágico onde a palavra destino foi usada dez vezes e a palavra amizade vinte e quatro. O nome de Liz Norton foi pronunciado cinquenta vezes, nove delas em vão. A palavra Paris foi dita em sete ocasiões. Madrid, em oito. A palavra amor foi pronunciada duas vezes, uma por cada um. (...) A palavra solipsismo, em sete. A palavra eufemismo, em dez. A palavra categoria, no singular e no plural, em nove."

Pontuação d' A Parte dos Críticos: 1.1/2



A Parte de Amalfitano

   Nesta parte somos introduzidos a Óscar Amalfitano, professor universitário, de Filosofia, e à sua existência solitária, quer em Espanha, quer no México. Dividindo a história em duas parte principais, na primeira parte é-nos relatada as aventuras da mulher de Amalfitano, Lola, enquanto esta leva uma vida errante com o objetivo de visitar o seu poeta favorito a um manicómio. Na segunda parte, acompanhamos a existência de Amalfitano, juntamente com a sua filha, Rosa, enquanto este vive diversas preocupações como o medo de estar a enlouquecer e a segurança da sua filha. Mais uma vez, o pano de fundo principal é a cidade de Santa Teresa.
   A história que nos é apresentada nesta parte não tem relação direta com a anterior, apenas aparecendo alguns dos personagens secundários em ambas (sendo que Amalfitano participa no final da história anterior). Continua sem haver uma ligação direta com o enredo geral do romance, sendo introduzidas novas temáticas, com uma relação quase indireta com as temáticas anteriores. Gostei mais da história desta parte do romance. Inclusive da parte da dúvida de Amalfitano sobre a sua sanidade mental, explorada pelo autor de uma maneira que roçava o sonho. Um sonho no sentido de desapego da realidade "normal" a que todos estamos acostumados. O estilo de escrita altera-se, também, mas apenas formalmente, descartando o autor o uso de parágrafos, travessões ou aspas para iniciar os diálogos. 
   Até agora o romance não tem sido nada de espetacular, mas também não tem sido desinteressante ou aborrecido. Tenho ainda uma visão neutra do romance. Apesar de esta parte ter sido muito interessante.

Citações:
"A Universidade de Santa Teresa parecia um cemitério que em vão se pusera repentinamente a refletir. Também parecia uma discoteca vazia."
"Estas ideias ou estas sensações, ou estes desvairos, por outro lado, tinham o seu lado satisfatório. Transformava a dor dos outros na memória de nós próprios. Transformava a dor, que é longa e natural, e que vence sempre, em memória particular, que é humana e breve e que escapa sempre."

Pontuação d' A Parte de Amalfitano: 1.4/2

domingo, 6 de agosto de 2017

Releitura de "Jerusalém", de Gonçalo M. Tavares

   Por vezes, somos surpreendidos por nós mesmos. Como quando revisitamos algo que julgámos de uma forma e surpreendentemente descobrimos ser de outra. Ou talvez não seja tão surpreendente quanto isso. Os gostos e as opiniões mudam com o tempo e com a maturação da nossa personalidade. É precisamente sobre isso que venho escrever. Decidi reler Jerusalém, de Gonçalo M. Tavares, porque senti-me insatisfeito com a opinião que tinha dele. Tinha a sensação de que me estava a escapar algo, que o meu julgamento não podia estar correto. E verifiquei isso mesmo. O que dá lugar a algumas questões. Onde falhei na primeira leitura? Que foi que não vi dessa vez? Que terá mudado? Como já referi, a maturação do gosto e da personalidade é o que muda a forma como analisámos as coisas. Neste caso, penso que foi essencial a leitura da geração literária anterior a este autor, nomeadamente Lobo Antunes e Saramago. Sem mais demoras, vejamos então o que mudou.
   A história segue a vida dos personagens principais desta narrativa, Mylia, Theodor Busbeck, Kaas Busbeck, Ernst Spengler, Hinnerk Obst e Hannah, os seus problemas, inquietações e desejos. A narrativa principal passa-se na madrugada de 29 de maio, sendo que o resto da história prossegue através de analepses que desenterram cada vez mais elementos do passado de cada um dos intervenientes principais. Estes elementos revelam-se essenciais na compreensão, não só das escolhas dos personagens, mas também dos temas que enformam o romance.
   Anteriormente, disse que o romance era escrito como se de uma obra técnica se tratasse. A minha opinião não mudou quanto a isso, mas mudou quanto ao espírito dessa afirmação. Explicando: o romance é desprovido de emoção de uma forma propositada, revelando, subentendido, uma emotividade temática que escapa à primeira vista. A mim escapou-me. Disse, também, que não percebi o teor da história do romance, o seu final. Outro aspeto que se revelou muito diferente nesta segunda leitura. A história revelou-se-me um verdadeiro prazer de leitura, original e muito bem escrito, e o seu final uma cereja no topo do bolo temático do romance, uma verdadeira chave de ouro, tanto conclusiva de como concordante com os temas analisados pelo autor. Disse também que os personagens não eram cativantes e que o texto se desenrolava de uma forma previsível, coisa que também verifico de forma diferente nesta segunda análise. As personagens que povoam este romance são originais e diferentes entre si, cada uma cativante à sua própria maneira. Quanto à previsibilidade do desenlace, não sei mesmo o que me levou a pensar assim à dois anos atrás: a história é surpreendente e original, caminhando a passo firme para o seu surpreendente e espantoso final. Tematicamente, penso que o tema é tratado magistralmente pelo autor. As dicotomias tradicionais de Bem/Mal, de loucura/normalidade, são dissecadas com o acutilante bisturi de Gonçalo M. Tavares, conferindo ao texto uma componente de ensaio, mascarado pelo estudo de uma vida feito por Theodor Busbeck. Por falar em Theodor, este personagem é fascinante por constituir o ponto de análise da plasticidade dos conceitos de normalidade e loucura, por constituir uma incerteza da localização da fronteira entre uma e outra. E o estudo sobre o horror na História do homem que este conduz ao longo da obra é simplesmente brilhante.
   E termino assim a releitura de Jerusalém, com uma nota de arrependimento e de penitência. Escaparam-me estas vertentes todas quando li o romance pela primeira vez, e não consigo mesmo explicar como cheguei às minhas conclusões anteriores sobre este livro, o que me levou a concluir algo que não é verdadeiro. Este romance é merecedor do prémio que recebeu, e percebo o porquê de Saramago afirmar que este romance pertence à grande literatura ocidental. O romance português pós-Lobo Antunes segue muito a sua crueza analítica, sendo, no entanto, romances mais europeus que portugueses. Este romance possui um cunho europeu mas absolutamente português nos temas. Posto isto, recomendo, claro, a leitura desta obra que marca o fim da introspeção e autognose da alma portuguesa e o início do olhar universalista na Literatura portuguesa. Vale bem a pena a sua leitura: é diferente, e por isso, um prazer.

Citações:
"Caríssimo marido, respeito o seu estudo, os manuais, os professores, os aparelhos, as técnicas, todos os anos em que leu páginas e páginas sobre diagnóstico e tratamentos, respeito tudo isso, mas para se perceber a cabeça de uma pessoa não basta ser médico, tem de se ser santo ou profeta."
"Se o horros estiver a diminuir é sinal de que seremos mais felizes daqui a cem gerações, se o horror estiver a aumentar esta História acabará, pois o horror final nada vai deixar; e depois, sim, poderá aparecer outra História melhor, mais ética. Estas duas hipóteses deixam-nos otimistas. Mas se o horror for constante, aí, então, não haverá esperança. Nenhuma. Tudo continuará igual."
"- Gomperz, o diretor, meteu-nos no bolso - disse Ernst uma vez. - Como um ciumento: não nos quis partilhar com mais ninguém da cidade, isolou-nos como se tivéssemos uma doença perigosa e contagiosa, uma doença física que saltasse de um corpo para outro, através de um animal pequeno e concreto, e que pudesse matar, como a peste, um milhão de pessoas de uma vez.
   Mas eles tinham estado simplesmente loucos."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

domingo, 2 de julho de 2017

"O Anjo da Tempestade", de Nuno Júdice

   Há livros que temos há tanto tempo em casa que chega o dia em que decidimos mergulhar de cabeça no que tem para oferecer. Foi este o caso de O Anjo da Tempestade. E que bem que soube esse mergulho! A obra em prosa de Nuno Júdice não é muito conhecida do público, uma vez que a sua obra poética é mais difundida, o que leva a que haja pouca divulgação daquela. Este romance valeu ao seu autor o Prémio Literário Fernando Namora. 
   A história é um desenvolvimento contínuo de uma premissa inicial, que é o assassinato de um tio-bisavô do narrador em meados do século XIX. Com este ponto de partida, o narrador desenvolve duas histórias em paralelo: a do seu tio-bisavô, que é desenvolvida com um misto de suposições e de hipóteses do que provavelmente aconteceu, e a sua própria história, feita de angústias e de oportunidades perdidas. De hipótese em hipótese, o narrador vai compondo o que se passou afinal nesse meado de século, aproveitando cada hipótese para discorrer sobre vários temas ligados à vida e à morte, ligando a essa história a outra de maneira a que a fusão das duas resulte numa espécie de resumo de um momento da sua vida. A história do romance pouco mais é que isto. Mas o que o torna interessante é o que mencionarei de seguida, porque uma boa história não é necessariamente igual a muita ação. 
   O romance é sublimemente escrito. O domínio do autor da língua é notável, conseguindo este manter-se num registo coloquial sem descair no corriqueiro, algo que é bastantes vezes muito complicado de equilibrar. Neste romance, as possibilidades e os acontecimentos misturam-se na mesma realidade. Como já referi, todo o desenvolvimento parte da premissa da morte do tio-bisavô do narrador, sendo a partir desse ponto de partida colocadas várias hipóteses pelas quais o narrador envereda ou não, como se tivesse a certeza do caminho a seguir numa estrada que bifurca muitas vezes. As ligações temáticas entre obras de arte e de música e os acontecimentos que narra compõem muito do fascínio que este romance exerce. O tema do amor e da morte atravessa todo o romance. As pinturas, as músicas e os escritos mencionados no texto ligam-se em pequenos pormenores às duas histórias principais, criando um círculo temático que corresponde muito resumidamente à vida humana. É também maravilhosa a forma equilibrada como se desenvolve a história, sem perder nunca o interesse no que está a ser descrito, apesar de todo o romance girar em torno dos mesmos temas. 
   Tenho pena que a prosa de Nuno Júdice não seja tão conhecida, porque milhares de leitores passam ao lado de obras como esta. Com isto quero dizer que esta é uma obra muito bem escrita e muito equilibrada que merece ser lida por todos quantos apreciem uma história bem desenvolvida. 

Citações:
"Ficará aqui a dúvida sobre se o crime teria sido consumado; e esta dúvida, no fundo, está bem dentro dos nossos hábitos e costumes, porque é raro que um processo chegue a bom termo, e quando chega demorou tanto tempo que o criminoso, caso o seja, ou mesmo que o não seja, transformar-se-á sempre em vítima, podendo acusar o poder de o manter indefinidamente atrás das grades, enquanto se discute se um papel está bom ou não está, ou se apura tal ou tal facto, que de tanto se apurar acaba por se transformar mais numa peça de ficção do que num relato que corresponde a um acontecimento determinado."
"Estes homens, relegados para uma nota de rodapé sociológica, não alteram a velha ideia de que somos um país de brandos costumes; talvez, porém, não o sejamos até ao fim, só que a nossa violência é uma violência em diminutivo, a violênciazinha de que somos capazes, como em tantas outras coisas o inho se insinua, impedindo-nos de ser grandes, com essa grandeza que entrou na essência de outros países como a França, onde dizer-se grandeur não é o mesmo que nós dizermos grandeza com a pronúncia redonda e profunda do francês a esmagar a sonoridade decrescente do português, onde o próprio império, estendido pelo mundo, no mundo se prolongava em diminutivo, por muito grande que fosse o território."
"O problema, hoje, é que tudo o que dizemos tem um duplo sentido. A inocência acabou. Somos o que dizemos; mas o que dizemos está para além de nós, nesse magma de significados que nos arrasta, como as enxurradas, e onde temos de procurar uma ou outra palavra a que nos agarrarmos, como uma tábua de salvação."


Pontuação: 9.1/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 5 de junho de 2017

"O Alienista", de Machado de Assis

   Machado de Assis é unanimemente considerado como o nome maior da literatura brasileira, produzindo na sua época uma obra bastante abrangente e influenciando os escritores brasileiros procedentes. É considerado pelo crítico literário Harold Bloom um dos maiores génios da Literatura. O Alienista é uma obra bem característica do estilo do autor brasileiro, mas que não é tão conhecida como outras obras deste. 
   A história segue o percurso de Dr. Simão Bacamarte, um insigne médico e grande estudioso, que, regressando à sua vila natal, Itaguaí, decide dedicar-se ao estudo da mente humana. Bacamarte decide, com esse propósito, construir uma casa onde albergasse todos os loucos de Itaguaí, que ficou conhecida pelo nome de Casa Verde. Com o passar do tempo, vão sendo aprisionadas na Casa Verde pessoas que aparentemente não padeciam de loucura alguma, o que foi provocando, aos poucos, a revolta no coração dos habitantes da vila. Este sentimento é despoletado pelo barbeiro Porfírio, que lidera uma revolta contra o "tirano" da Casa Verde, mas que acaba por destituir o Governo, assumindo ele, o barbeiro, o governo da vila. Após uma distorção ética que apenas o poder pode despertar no coração humano, há ainda outra revolta para destituir o barbeiro, liderada por outro barbeiro, este de seu nome João Pina, que foi internado na Casa Verde pouco depois. Certo dia, a vila espanta-se ao saber que os loucos seriam todos postos na rua. A razão para tal decisão, segundo Simão Bacamarte, era uma inversão na sua teoria da loucura: não era louco quem possuía o desequilíbrio das suas faculdades, era-o que possuía um equilíbrio perfeito destas. Com esta premissa, todos aqueles que possuíam caráteres perfeitamente éticos eram internados na Casa Verde. Não satisfeito, ainda assim, Simão Bacamarte, após muito meditar, chega à conclusão de que o louco era ele, porque possuía um equilíbrio perfeito nas suas faculdades, internando-se, assim, na sua própria instituição.
   Antes de começar, quero apenas dizer que o género desta história é debatido pelos estudiosos, havendo os que a consideram um conto e os que pensam dela uma novela, opção para a qual me inclino mais. Esta novela é um exemplo perfeito de como um texto pequeno pode estar carregado de significado. O toque satírico que o autor dá ao texto complementa harmoniosamente a profundidade ensaística por este pretendida, resultando numa novela divertida e filosófica, algo para nos fazer rir e pensar, duas características dificílimas de conjugar tão bem. Os personagens da história representam metaforicamente vários aspetos da história humana, sempre com as revoltas e as submissões em constante ebulição nas suas almas. O mais interessante na novela é a inversão que sofre a teoria de Simão Bacamarte. A teoria começa pelo que é considerado o correto, que louco é quem possui o desequilíbrio das suas faculdades, sendo que este conceito vai sendo alargado ao longo do texto, com o médico a internar cada vez mais pessoas sem um critério delimitativo da loucura. Isto até chegar à conclusão de que louco é quem possui o equilíbrio perfeito das suas faculdades, internando, desta vez, as pessoas que possuíam um caráter forte, ético, "normal". Isto assim acontece por intenção do autor, para nos levar a questionar, afinal, o que é a loucura, o que fará de uma pessoa um louco ou normal. Também serve para estabelecer uma crítica à sociedade da sua época, dizendo o autor com este texto que a loucura se generalizou, sendo, para mim, a maior crítica e representação disso, o episódio em que o único vereador da Câmara que é contra o regime de exceção do governo é internado na Casa Verde, precisamente por possuir o rigor ético no seu caráter. 
   Em suma, trata-se esta de uma obra que vale bem a pena ser lida e conhecida do público, pelo seu caráter simultaneamente satírico e filosófico. 

Citações:
"Como fosse grande arabista, achou no Corão que Maomé declara veneráveis os doidos, pela consideração de que Alá lhes tira o juízo para que não pequem. A ideia pareceu-lhe bonita e profunda, e ele a fez gravar no frontispício da casa; mas, como tinha medo ao vigário, e por tabela ao bispo, atribuiu o pensamento a Benedito VIII, merecendo com essa fraude aliás pia, que o Padre Lopes lhe contasse, ao almoço, a vida daquele pontífice eminente."
"Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo o seu cuidado na tafularia, um ou outro almocaté enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista."
"O vereador Freitas propôs também a declaração de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo do alienados: cláusula que foi aceite, votada e incluída na postura, apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara, legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das consequências da lei; a exceção era odiosa e ridícula."


Pontuação: 9.5/10


Gonçalo Martins de Matos

sábado, 3 de junho de 2017

"A Volta ao Mundo em Oitenta Dias", de Jules Verne

   A história de A Volta ao Mundo em Oitenta Dias é uma das histórias mais acarinhadas do pai da ficção científica, Jules Verne. As histórias de Jules Verne estão repletas de relatos tão fantásticos como criativos, sendo o autor considerado como um dos mais imaginativos autores do final do século XIX e do início do século XX. E é notável a imaginação impressa nas páginas de Jules Verne.
   Dito isto, passemos à história. Phileas Fogg é um típico gentleman inglês, regrado, fleumático e rigoroso. A sua vida segue uma rotina rigorosa, sempre igual e metódica, calculada ao segundo. Este conhece Jean Passepartout, que apresenta os seus serviços de criado a Phileas Fogg, julgando encontrar no rigoroso patrão a estabilidade que sempre desejou para a sua vida. No entanto, Phileas Fogg faz uma aposta com os seus colegas do Reform Club em como é possível fazer uma viagem à volta do Mundo em oitenta dias. Assim fica apostado e sem perder mais tempo, Fogg e Passepartout partem em viagem nesse mesmo dia. No entanto, uma suposição errada leva no seu encalço o agente Fix, inspetor da polícia extremamente confiante das suas capacidades. Após alguns eventos pontuais, Phileas Fogg decide, na Índia, resgatar uma mulher que serviria como sacrifício num ritual parse, chamada Mrs. Aouda. Estão assim os personagens principais desta história introduzidos. O resto da narrativa trata de todas as aventuras e eventuais desventuras que estes personagens viveram na sua viagem, culminando tudo num final feliz e didático.
   Não tenho muito a dizer deste livro de Jules Verne. É uma leitura leve e direta, não perdendo tempo com pormenores desnecessários mas presenteando os leitores com descrições mais pormenorizadas de vez em quando. A personagem mais fascinante desta obra é Phileas Fogg, o indecifrável inglês. É o único personagem em quem se nota alguma evolução, começando o livro metódico, frio e calculista e terminando da mesma maneira, mas feliz e aberto a novos sentimentos. Eu diria que esta é uma das maiores falhas do livro, os personagens são os mesmos do início ao fim, não evoluem com as situações que defrontam. No entanto, neste caso, este aspeto não contribui muito negativamente para o livro, uma vez que este foi escrito com o propósito de entreter apenas. E nesse aspeto é impecável, é de fácil e contagiante leitura. 
   Trata-se de uma obra marcante de um autor marcante no campo do uso da imaginação na construção da narrativa, sendo, no entanto, uma história simples e que serve como entretenimento. Quem se diverte e entretém com a leitura deve ler este livro, pois foi um dos maiores contributos para os livros de ação e ficção científica que se seguiram nos séculos seguintes.

Citações:
"Phileas Fogg saíra da casa de Saville Row às onze e meia e, depois de ter posto quinhentas e setenta e cinco vezes o pé direito diante do pé esquerdo e de ter colocado quinhentas e setenta e seis vezes o pé esquerdo diante do pé direito, chegou ao Reform Club, vasto edifício, construído em Pall-Mall, que não custou menos de três milhões."
"Phileas Fogg, com o corpo direito, as pernas abertas, firme como um marinheiro, contemplava, sem cambalear, o mar agitado. A jovem, sentada à popa, sentia-se comovida ao contemplar o oceano, já invadido pelas sombras do crepúsculo, e cuja fúria ela arrostava numa frágil embarcação."
"Estes fios de metal, semelhantes às cordas de um instrumento, soavam como se algum arco os fizesse vibrar. O trenó voava no meio de uma harmonia plangente, de sonoridade muito particular."


Pontuação: 6.8/10


Gonçalo Martins de Matos

terça-feira, 18 de abril de 2017

"Cândido ou o Otimismo", de Voltaire

   Voltaire é uma figura bastante conhecida e incontornável do Iluminismo e da filosofia ocidental. Ficou famoso pelas suas ideias sobre a liberdade de expressão e de pensamento e pela sua mordaz ironia. Ironia essa que conhece a sua expressão mais famosa nesta paródia de romance que dá pelo nome de Cândido ou o Otimismo. Publicado anonimamente, é imediatamente descoberto o autor, atingindo o marco impressionante de vinte edições logo no ano de publicação. É fácil, com estes números, perceber o impacto estrondoso desta obra na cultura europeia setecentista. 
   O jovem Cândido vive no castelo de um barão na Vestfália, onde se apaixona pela bela Cunegundes. Cândido cresce a ouvir as teorias do filósofo Pangloss, de que tudo vai pelo melhor até ao dia em que é expulso do castelo por ter sido descoberto pelo barão com Cunegundes. Partindo daqui, Cândido percorre o mundo, vivendo mil e uma aventuras tão inverosímeis como fantásticas. Ao longo de todas as suas desventuras, Cândido vê ser postas em causa todas as teorias otimistas de Pangloss, cada vez mais desacreditando do que o velho percetor dizia. Todas essas aventuras culminam num final terrivelmente irónico e cético, que nos leva a questionar que raio será o papel do homem no miserável espetáculo do mundo.
   Temos três momentos na narrativa. O primeiro momento é o da inocência do otimismo de Cândido, que de cada obstáculo retira um aspeto positivo posterior que suportam a sua crença nas teses de Pangloss. O segundo momento corresponde à descoberta do "melhor dos mundos possíveis", o fictício Eldorado. O terceiro é a fase da crescente descrença e perda da inocência, após a descoberta do "melhor dos mundos possíveis", no qual Cândido se vai convencendo cada vez mais de que o mundo talvez não vá pelo melhor. Os personagens que rodeiam Cândido e as ideias destes marcam bem estes momentos. No início da narrativa, Cândido viaja com Pangloss, que representa a inocência do otimismo; a meio da narrativa, Cândido é acompanhado por Cacambo, personagem cuja ideologia neutra reflete a descoberta do mundo ideal; no final da narrativa, Cândido conhece Martin, cujas ideias derrotistas e céticas representam bem a crescente desilusão do jovem face ao mundo, terminando tudo num reencontro de personagens que reflete a humanidade num todo, ou seja, que todos têm, no fundo, razão nas suas teorias, porque o mundo é assim mesmo: complexo. Merece ainda referência o simbolismo da personagem de Cunegundes, que inicia a narrativa sendo de uma beleza extraordinária e a termina sendo de uma fealdade repugnante, o que simboliza, a meu ver, o próprio otimismo, a ilusão que cria da vida e a posterior revelação da crua verdade. Este conto foi marcante no contexto da literatura europeia. Voltaire introduziu, com este, o uso da ironia e da paródia para criticar a sociedade, algo a que a maior parte das obras literárias recorrerá a partir da introdução do Realismo. 
   Não tenho mais nada a acrescentar, porque a obra é bastante simples. Mas a sua relevância na cultura ocidental é marcante da época iluminada a que pertenceu o seu autor. Para quem aprecia uma boa gargalhada e uma dissecação dos aspetos viciosos da sociedade (que se mantêm, diga-se de passagem), deve ler esta obra. 

Citações:
"A sua fisionomia retratava a sua alma. Possuía o raciocínio justo e o espírito simples; era decerto por essa razão, penso eu, que lhe chamavam Cândido."
"Após o tremor de terra que destruíra três quartos de Lisboa, os sábios do país cogitaram em que o meio mais eficaz para prevenir a ruína total da cidade consistia em dar ao povo um rico auto-de-fé. Fora decidido pela Universidade de Coimbra que o espetáculo de várias pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um segredo infalível para impedir a terra de tremer." 
"- Trabalhemos sem filosofar - disse Martin -, porque é o único meio de tornar a vida suportável."


Pontuação: 9/10


Gonçalo Martins de Matos

sexta-feira, 7 de abril de 2017

"O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde

   A história de Dorian Gray e do seu retrato é bastante conhecida no seio da literatura moderna inglesa, e uma história marcante no contexto da literatura ocidental. Os temas que Oscar Wilde aborda na sua obra fazem de O Retrato de Dorian Gray um romance de final de século, quando a literatura preparava já o boom modernista dos século seguinte. É por essa razão principalmente que este romance é considerado marcante na literatura ocidental. 
   Dorian Gray é um jovem extremamente belo, e Basil Hallward um pintor ensimesmado e profundamente moral. Estes dois iniciam assim representados a narrativa do romance, com Hallward maravilhado enquanto pinta um retrato de corpo inteiro de Dorian. É-nos neste momento também apresentado Lord Henry Wotton, um nobre decadentista e novo-hedonista, cujas filosofias libertinas e narcisistas captam a atenção do jovem Dorian. Lord Henry fascina-se pela beleza de Dorian e começa, a partir desse dia em que se conheceram, a seguir de perto a evolução do jovem, a contragosto do pintor, que teme que as filosofias decadentistas de Lord Henry corrompam a mocidade do jovem. Lord Henry acrescenta que o retrato que Basil fez de Dorian é o pico da sua arte. Cada vez mais influenciado pelas teses de Lord Henry, Dorian fica desejoso de experimentar o prazer de experiências novas, mas teme pelos estragos que na corrupção causada pelas mesmas distorçam a sua juventude. Apaixonando-se por uma jovem atriz, mas terminando essa paixão de forma gélida e insensível, a atriz mata-se e Dorian descobre que o seu retrato se distorceu ligeiramente. Chega então à conclusão que o seu retrato é que irá envelhecer pelos seus pecados, a corrupção deformará apenas a sua imagem. E é com base nesta suposição que se desenvolve o resto da narrativa, com Dorian a experimentar novas sensações, quer morais, quer imorais, pelo simples prazer da experiência tão defendido por Lord Henry. Tudo isto culmina num crime e dá caminha em decadência para um final simultâneamente sinistro e poético. 
   A obra enquadra-se, tematicamente, na corrente do esteticismo, uma versão vitoriana do simbolismo/decadentismo que viria a evoluir para o modernismo. A obra apresenta também traços do romance gótico. Em O Retrato de Dorian Gray, o símbolo domina a narrativa. Há três personagens-chave do romance que representam a visão decadentista do autor: Dorian Gray, que representa a inocência da juventude e, posteriormente, o resultado aterrador de uma inocência corrompida; Basil Hallward, que representa os valores morais defendidos pela tradição e pelo costume da sociedade; e Henry Wotton, que representa as novas filosofias e as novas experiências libertinas que corrompem a moralidade da inocência. Sendo este um romance esteticista, não faltam espalhadas pela obra as referências à beleza e à arte, e não faltam descrições detalhadas de cores, cheiros e sons. Essas descrições fascinaram-me, uma vez que Oscar Wilde descreve perfumes e cores de uma maneira tão viva que quase se consegue ver, ouvir e sentir o que está a ser descrito. 
   Sem mais nada a acrescentar, declaro que este livro é esteticamente belo, e a sua história é aliciante, pelo que recomendo a todos os amantes do que é belo a lerem esta obra emblemática. 

Citações:
"Porque influenciar uma pessoa é transmitir-lhe a nossa própria alma. Ela não pensa já os seus pensamentos, nem arde com as suas paixões naturais. As suas virtudes não são realmente dela, Os seus pecados, se se pode dizer que existam pecados, são emprestados."
"Dos lábios do pintor brotou uma exclamação horrorizada, quando viu à meia luz a face hedionda que na tela parecia arreganhar os dentes para ele. Havia na sua expressão qualquer coisa que o enchia de desgosto e de nojo. Deus do Céu! Era o próprio rosto de Dorian Gray que contemplava!" 
"A Arte não tem qualquer influência sobre a ação. A arte aniquila o desejo de agir. É soberbamente estéril. Os livros que o mundo considera imorais são aqueles que lhe põem diante dos olhos as suas próprias vergonhas."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

"A Quinta dos Animais", de George Orwell

   A história de A Quinta dos Animais é uma das mais conhecidas da literatura universal, e são duas as razões, a meu ver, principais para que assim seja: trata-se de uma das fábulas satíricas melhor escritas e equilibradas e a sua análise inerentemente intrínseca à condição e à fraqueza humana. A Quinta dos Animais é considerado um dos melhores romances do século XX, e os temas universais que o compõem são ainda hoje estudados e analisados. Este romance faz parte do imaginário português, no entanto, sob outro título, a primeira tradução em língua portuguesa: O Triunfo dos Porcos
   Cansados da tirania dos seres humanos e inspirados por um grande líder muito respeitado por todos, os animais da Quinta do Infantado revoltam-se contra os opressores humanos e tornam-se senhores dos seus próprios destinos. Libertos do jugo humano, os animais, mais precisamente, os porcos, decidem reorganizar a quinta com um novo sistema político e ideológico, o animalismo, segundo o qual todos os animais são iguais. Os princípios do animalismo são compilados em Sete Mandamentos, que todos os animais devem respeitar de forma a que a vida na quinta corra da melhor maneira possível. No entanto, esses princípios vão sendo aos poucos violados pelos animais que tomaram as rédeas da Quinta dos Animais, os porcos, sendo que Napoleão vai aos poucos tomando o controlo de todos os aspetos da vida dos animais. Ajudado por Tagarela, um porco com o dom da retórica, Napoleão gradualmente molda e distorce os princípios originais do animalismo de forma a servir unicamente os seus interesses e os dos outros porcos. A história, em paralelo com isto, vai narrando como decorria a vida dos restantes animais da quinta. No final, Napoleão e os porcos subverteram de tal maneira as teses do animalismo que apenas sobra um mandamento, "Os animais são todos iguais mas uns são mais iguais que os outros", tornando-se eles nos opressores. 
   Eu achei o livro perfeito. Sei que é uma palavra muito perigosa de se usar num tema subjetivo, mas perfeição encaixa perfeitamente, passe a redundância, na obra A Quinta dos Animais. Toda a sua história é concisa, mas elucidativa, simples, mas complexa, equilibrada e escrita com mestria. Tudo na obra é uma alegoria de qualquer coisa. A Quinta dos Animais serve como a Rússia nos seus anos soviéticos, os animais representam, claro, o povo russo, Napoleão é uma alegoria de Josef Stalin, Tagarela, uma alegoria de Molotov, Bola-de-Neve uma alegoria de Lenin e de Trotski, o Velho Major uma alegoria de Marx e Lenin, o velho burro Benjamim uma alegoria do próprio George Orwell, todos os eventos que se passam na história seguem alegoricamente a sucessão reais de eventos na Rússia... enfim, toda a obra é uma grande alegoria satírica da situação russa no século XX. Mas mais que a alegoria, como anteriormente referi, a obra ganha com a sua profunda análise da condição humana, e das suas fraquezas, nomeadamente, a fraqueza do luxo e do poder. A revolução dos animais começou baseada na igualdade e na fraternidade e, devido à ânsia de poder de alguns, todos acabam por sofrer com a lenta e inevitável corrupção dos princípios justos. Napoleão representa precisamente essa corrupção dos princípios morais humanos, tendo calhado a Stalin ser o representante alegórico dessa decadência ética, através do personagem do porco. Mas nem todas as sociedades justas evoluem para ditaduras, e é neste ponto que julgo encontrar-se a genialidade de A Quinta dos Animais; quase todas as democracias modernas evoluíram para sistemas em que poucos controlam todos e os interesses prosseguidos por esses poucos são exclusivamente os seus. Está aqui a corrupção e distorção dos princípios morais do ser humano devido à sua grande fraqueza pelo poder. 
   Portanto, resumindo, o livro é brilhante e inspirado, e penso tratar-se de uma das leituras obrigatórias para todos os seres humanos sem exceção, tenham ou não o hábito da leitura.

Citações:
"«O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é demasiado fraco para puxar o arado, não consegue correr suficientemente depressa para caçar coelhos. E, todavia, é amo e senhor de todos os animais. Obriga-os a trabalhar, dá-lhes o mínimo indispensável para evitar que morram de fome e guarda o resto para si." 
"Ao longo daquele ano inteiro, os animais trabalharam que nem escravos, mas, apesar disso, sentiam-se felizes; não se poupavam a esforços nem a sacrifícios, bem cientes de que tudo o que faziam era para benefício próprio e das futuras gerações de animais, e não para um bando de seres humanos preguiçosos e ladrões."
"Por uma vez, Benjamim consentiu em quebrar a sua regra e leu-lhe em voz alta o que estava escrito na parede. Já só restava um único Mandamento, que rezava assim:
TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS MAS UNS SÃO MAIS IGUAIS DO QUE OUTROS"


Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

"Húmus", de Raul Brandão

   Húmus é a obra mais conhecida de Raul Brandão, e uma das obras mais influentes da literatura portuguesa do século XX. As temáticas presentes nesta obra levam a que tenha sido identificada como o primeiro romance existencialista português, tendo da influência deste romance nascido o movimento existencialista português na segunda metade do século XX. 
   Como se trata de um romance-ensaio filosófico, o autor deu pouco ênfase a uma história em concreto e dedicou-se mais aos pensamentos do narrador. A narrativa apresenta-nos um espaço físico, uma vila, várias personagens que apenas preenchem o espaço físico, para relembrar o leitor de que se trata de uma história humana, com seres humanos, e um tempo, sensivelmente um ano. Tratando-se de uma obra existencialista, a história surge como uma mera desculpa para o autor poder enveredar pelas suas divagações. No entanto, neste romance, ao contrário de outros do mesmo estilo, não tem uma história determinável, sendo composto de um ou outro acontecimento que apenas servem para introduzir uma nova linha de pensamento do narrador. O que é concretamente determinável é que a história se centra num narrador anónimo e no seu alter-ego, o filósofo lunático Gabiru, com quem envereda num longo monólogo interior enquanto expõem as suas impressões sobre a vida na vila e no mundo, sendo as suas opiniões quase sempre antagónicas. A estes juntam-se outros personagens que não existem realmente, que são apenas a visão que o narrador tem de cada um.
   Húmus é um romance que não é bem um romance. É uma prosa poética. É um ensaio e não é. É um diário sem o ser verdadeiramente. Húmus é uma contradição constante, não sendo nem de um género nem de outro. O húmus, o composto orgânico, também é uma contradição, é composto de matéria morta, mas de si nasce a vida. Talvez seja essa a razão porque Raul Brandão escolheu o título de Húmus para este seu romance filosófico. A vida e a morte são uma constante ao longo do romance, e o narrador confronta sempre a dura realidade que é a morte com a mentira que é a vida pensada em relação à vida real. O narrador chama a essa vida pensada ilusão, ilusão causada pela necessidade do homem em negar a morte e em negar a dura realidade das coisas. As divagações filosóficas do narrador percorrem todo o tipo de temas, sempre subjugados às duas temáticas principais. O narrador fala em hipocrisia, em sonho, em fé, nos oprimidos. O romance organiza-se, na minha visão, em quatro ciclos temáticos, uma vez que no final de cada sequência de capítulos há um capítulo reservado á visão de Gabiru. Não há temas que escapem à dissecação do narrador e à análise contundente e delirante de Gabiru. Gabiru tem quase como que uma palavra final, um último dizer sobre as coisas, cada ciclo temático termina com um capítulo apelidado de "Papéis do Gabiru", no qual o Gabiru expõe a sua visão peculiar sobre os temas que o narrador analisou. 
   Para quem gosta de grandes romances carregados de filosofia e pensamento tem em Húmus um romance ideal. Não é uma leitura fácil, e é por isso que eu apenas recomendaria este romance a quem aprecia este tipo de dissecação filosófica da realidade. No entanto, trata-se de uma obra marcante na literatura portuguesa que deve ser lida por todos os apreciadores da grande literatura.

Citações:
"Sob estas capas de vulgaridade há talvez sonho e dor que a ninharia e o hábito não deixam vir à superfície. Afigura-se-me que estes seres estão encerrados num invólucro de pedra: talvez queiram falar, talvez não possam falar."
"É ele que me prega: - Toda a agitação é inútil. Não tenhas medo da desgraça! - E eu tenho medo da desgraça. À força de hábito cheguei a mantê-lo no seu lugar, mas nunca o pude suprimir, e quanto mais me aproximo da morte, mais saudades levo do Gabiru, que me estragou a vida toda."
"Aqui estamos todos bichos em frente de bichos, os que pagam as letras e os que têm as letras protestadas, nós e nós, nós e os ladrões das estradas, nós vestidos e grotescos, nós nus e trágicos - nós e o universo monstruoso! Nós corretos e nós disformes, nós e o céu profundo na sua temerosa realidade."


Pontuação: 7/10


Gonçalo Martins de Matos