Como se mais certezas fossem precisas, António Lobo Antunes é, a par de José Saramago, um gigante da literatura lusófona. Em cada romance de Lobo Antunes tenho encontrado autênticos tesouros de linguagem tão geniais como viscerais.
Cinco ex-combatentes da guerra colonial encontram-se numa noite de copofonia, ao longo da qual entram em diversas reminiscências sobre a própria guerra, sobre as suas vidas no regresso a Portugal no período pré-revolucionário e sobre como as suas vidas deram as mais variadas voltas com a Revolução e com o pós-revolução. Abílio, o soldado, recorda principalmente o acolhimento por parte do seu tio na sua empresa e em sua casa, onde conhece Odete, por quem teve uma paixão. Jorge, o alferes, rememora sobre as tensões com a família de classe alta da sua ex-mulher e sobre o processo de divórcio, quer com a sua mulher quer com a sua filha. Artur, o tenente-coronel, rumina a sua viuvez ao regressar a Portugal, a par com o progresso da sua carreira rumo ao generalato durante as convulsões pós-revolução. Celestino, o oficial de transmissões, recorda os seus tempos de militância comunista no regresso à pátria e a sua prisão e libertação no período revolucionário, assim como a sua paixão por Dália, sua camarada. O Capitão, o quinto elemento da noite dos militares, não tem participação ativa, ouvindo as queixas e as frustrações dos seus camaradas, servindo esporadicamente de narrador. A noitada dos cinco segue também ela um percurso caricato, terminando, como as próprias aspirações portuguesas pós-revolucionárias, num final tão inverosímil como tragicómico.
O paralelismo que Lobo Antunes opera entre as vidas e os infortúnios dos cinco militares e o percurso de Portugal entre o fim da ditadura e a consagração democrática é de um delicioso pessimismo. Este autor nunca escondeu, nas suas obras, uma visão mais pessimista da oposição entre as promessas da mudança e o conformismo português. Nenhuma das quatro vidas que nos são relatadas tem alguma hipótese de felicidade. E, no entanto, a esperança continua lá. A melancolia é uma constante na nossa autoavaliação histórica, e este romance captura essa visão de mundo tão peculiar de uma forma magistral. António Lobo Antunes é um dos mestres da língua e da linguagem portuguesas. As suas obras estão repletas de puro vernáculo, que dá sempre um imenso gosto de ler. O domínio da linguagem expressa-se no uso imaginativo que faz de certos recursos estilísticos que se tornaram apanágio de Lobo Antunes, como as descrições metonímicas com enfoque na sinédoque, as sinestesias e as personificações, ou a prosa polissindética. O romance está dividido em três partes, "antes da revolução", "a revolução" e "depois da revolução", que marca os períodos aos quais se prendem as recordações de cada um, e cada parte subdivide-se em 12 capítulos. Os quatro primeiros capítulos de cada parte correspondem aos quatro distintos narradores, aglomerando-se e confundindo-se as vozes com a progressão dos restantes capítulos. A única exceção é o capítulo 11 da terceira parte, que corresponde a uma personagem que não participa na ação, mas que tem um papel fundamental enquanto súmula da mensagem que Lobo Antunes redige, e que constitui um momento de prosa sublime no panorama da literatura portuguesa. O tempo do romance funciona de uma forma bastante antuniana; existe o tempo da ação, que ocorre na noitada, e os tempos psicológicos, onde a ação decorre nos períodos relatados, mas nas cabeças dos ex-combatentes. Devido a esse facto, durante os relatos de cada um deles, o tempo ziguezagueia entre a noitada e o tempo narrado, o que gera intromissões e comentários por parte dos restantes presentes, assim como fluxos de consciência do personagem sobre quem incide o foco. Em alguns capítulos, o autor dá-se a pequenos momentos de plasticidade estrutural, iniciando parágrafos com minúsculas, isolando certas sequências de ideias do resto do parágrafo ou acompanhando o movimento descrito com a redação das palavras que o descrevem.
Fado Alexandrino é um grade romance de um autor fenomenal, e deve ser lido e apreciado em toda a sua brilhante originalidade.
"Saiu a arrastar a mala, misturado com os colegas, do edifício desbotado do quartel, e distinguiu logo, do outro lado das grades, no passeio, uma espécie de monstro marinho de caras, de corpos e de mãos, que se agitava, aguardando-os, no meio-dia cinzento da Encarnação, em que os semáforos boiavam ao acaso, suspenso na neblina como frutos de luz."
"O telefone tocou e momentos depois o braço do tenente-coronel movia-se no escuro, às cegas, tacteando a pele grumosa da alcatifa à procura do auscultador: os dedos tropeçaram num chinelo, numa espiral de fios, num livro caído, aberto como uma ferida nas trevas, sangrando letras"
"O oficial de transmissões virou à direita e à esquerda nas ruelas varicosas do Bairro Alto, nos aneurismas dos becos, nos inchaços das escadinhas, enquanto os reformados, lá em cima, vogavam de chapéu e gravata por cima dos algerozes e das cornijas dos telhados: Quais são os reformados, perguntou-se ele, e quais são os pombos se todos se alimentam das migalhas do vento?"
Pontuação: 9.8/10
Gonçalo Martins de Matos
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