Afonso Cruz é uma das grandes revelações do século. Detentor já de vários
prémios e títulos, torna todas as suas histórias dignas de uma profunda
interpretação, pelos ensinamentos que transportam. “Vamos Comprar um Poeta” não
fica atrás; é uma prosa simples, sem muitos enredos, mas que retrata no seu
todo uma sociedade com ausência de cultura. Uma prosa que nos faz sem dúvida
repensar duas vezes o valor que damos às coisas, às pessoas e àquilo que elas
fazem.
Num mundo distópico, onde a própria identidade é descartada, um agregado
familiar de quatro pessoas leva a sua vida descrita como normal, sob o lema
“Crescimento e prosperidade”. Um casal, composto pela típica e formatada mulher
e por um homem de negócios, um próspero economista, e dois filhos,
possivelmente na adolescência, uma rapariga focada no mundo que a rodeia, e um
irmão visto como um não contribuinte, porque se apaixona muito facilmente e
está, no geral, alheio ao seu dever de gerar lucro.
Ter um artista em casa era um sinal de uma boa economia familiar, e havia,
claro está, várias categorias – escultores, pintores, poetas. Poetas eram os
que menos sujavam, só precisavam de uma cama, comida, papel e caneta, e
contribuíam para a produtividade dos agregados em que se encontravam. Mais
produtividade, mais crescimento, mais prosperidade.
Com a aquisição do poeta, a vida familiar começa a enfrentar algumas
dificuldades. Há janelas que não passam de um verso numa parede, e versos que
fazem ecoar dúvidas na mente das personagens. Há tráfico de versos para levar a
uma amada, e ainda ensinamentos intemporais: afinal, porque é que usamos
metáforas? A relação da rapariga e do poeta estreita-se pela curiosidade de ver
coisas onde elas não estão, e há uma aprendizagem significante. Ao mesmo tempo,
há dificuldades que surgem, empresas que ameaçam falir, e palavras que se
tornam obscenas – “bancarrota”.
Perante uma maré de dificuldade, a presença desta aquisição poética
torna-se indesejada, um problema a ser cortado pela raiz. Então, faz-se como se
faz, infelizmente, a um animal…. Leva-se para um sítio longe de casa, e
abandona-se. A crueldade do ato descrito chega-nos, porém, retratada de uma
forma leve e desinteressada, é algo já comum neste mundo de algarismos, mas não
deixa de interferir com o decorrer normal das coisas, e não deixa de lembrar ao
leitor o horror do abandono. Ter um poeta, afinal, era só mais um gasto, agora
já insuportável: se para uns foi apenas uma boca que comia e lançava para o ar
comentários incompreensíveis e desagradáveis, para outros, foi o verdadeiro
entendimento do que é crescimento e prosperidade.
Toda a obra é um chamar de atenção à descredibilização da cultura, quer por
aspetos informais, como o seu conteúdo e o desenlace das várias personagens,
quer por aspetos formais presentes na escrita do autor. A ausência de pontuação
conjugada com o entusiasmo excessivamente teatral de frases e falas de
exclamação. Tendo escrito a obra coberto de uma ironia característica dos que
reconhecem a essencialidade da arte, Afonso Cruz faz-nos entender que não
estamos longe de um mundo cinzento e desinteressante, mas que ao mesmo tempo
temos nas mãos o necessário para lhe devolver cor. Através de diálogos curtos e
um tanto simples, mas com uma profundidade imensurável, o texto torna-se uma
viagem acerca dos valores que nos caracterizam. É sobretudo uma prosa para
reflexão acerca do que somos e daquilo que precisamos. Talvez seja somente
preciso um aquecedor para cada um de nós, ou um verso que nos faça ver o mar.
Citações:
“O pai não é alto, e eu tampouco, aliás, é por isso que me chamam de ordenado mínimo, que é algo que já existiu em tempos, mas que felizmente foi extinto, porque, dizem, era um entrave à competitividade mais elementar.”
“Sensação estranha. Enquanto caminhávamos, o poeta deu-me a mão. Quando via borboletas ficava a olhar para elas. Aconteceu dua vezes durante o trajeto.”
“Hhhjxhsjjjsjjjsjjsjkkkk, disse o poeta, ou seja, o dromedário leva às costas o horizonte e uma pequena montanha.”
“Por acaso, o poeta acha eu os vegetais e frutas são o
mais importante da pirâmide das necessidades?
Evidentemente que não.
É o quê, então?
É a liberdade.
Francamente…”
Carla Sofia Eiras
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