sexta-feira, 12 de julho de 2019

"Aprender a rezar na Era da Técnica", de Gonçalo M. Tavares

   Após um início meio conturbado com a obra e a escrita de Gonçalo M. Tavares, queria aqui desde já retificar o génio literário que se observa na sua obra. Se antes vacilei neste reconhecimento ao autor, nada mais foi que imaturidade literária. Reconheço-o agora. Gonçalo M. Tavares é, de facto, um dos escritores contemporâneos mais originais e brilhantes e merece, sem dúvida, todos os prémios e reconhecimentos que lhe são atribuídos. Este Aprender a rezar na Era da Técnica é o quarto e último volume da tetralogia O Reino, da qual fazem parte Um Homem: Klaus Klump, A Máquina de Joseph Walser e Jerusalém
   O protagonista desta história, Lenz Buchmann, teve uma educação cruel e militarista por parte do seu pai Frederich, o que o marcou e moldou na sua idade adulta. Lenz é um médico muito competente, um dos melhores profissionais do hospital, precisamente por causa da sua educação. Desprovido de sentimentos fúteis, trata-se de um "homem forte", objetivo e pragmático, para além de frio e calculista. Depois de nos ser dada a conhecer muita da ideologia pessoal de Lenz, entramos naquela que parece ser a história chave deste romance: o abandono do exercício da medicina por Lenz para se poder dedicar à política. Possuindo as características já referidas, a ascensão de Lenz no Partido do poder é rápida, eficaz e impiedosa, conseguindo ele chegar, no pouco tempo que esteve no Partido, ao lugar de vice-presidente. No intermédio de tudo isto, é-lhe atribuída uma secretária, de seu nome Julia Liegnitz, que o irá acompanhar o resto da narrativa. Todo este sucesso tem um final abrupto, dando-se um acontecimento definitivo que marca o fim de todo o seu sucesso. A posição de Lenz no mundo é abalada e este nunca mais a recupera.
   Como os anteriores, este romance trabalha a perspetiva pessoal dos seus personagens sobre o mundo. Neste caso, a perspetiva do protagonista, Lenz Buchmann. O subtítulo do romance, "Posição no mundo de Lenz Buchmann", demonstra isso mesmo. E que perspetiva! Através dos seus olhos, conhecemos as suas ideias sobre os fortes e os fracos, sobre a natureza e o homem, sobre a paz e a guerra, e sobre como estes conceitos andam sempre em conflito, na luta pela posição mais vantajosa no mundo. Como nos romances anteriores, estas ideias servem para traçar um retrato negro sobre o poder, a crueldade, a ambição e a loucura na alma humana. O romance encontra-se dividido em três partes, cujos nomes não referirei pois oferecem revelações fundamentais sobre a história. Na primeira parte, conhecemos o "homem forte" e as suas ideias, para além da sua ascensão no Partido; na segunda parte, vemos a alteração da posição no mundo de Lenz; a terceira parte consagra em definitivo esta alteração. Lenz é um homem cujas ideias e percurso nos levam, de início, a não torcer por ele, porque não conseguimos concordar com a sua visão do mundo. No entanto, curiosamente, não conseguimos de deixar de reconhecer a lógica por trás dos seus pensamentos. Aí reside um dos pontos fortes deste romance (e dos outros, no geral), a lógica aos serviço da loucura e da crueldade. O duelo força vs fraqueza percorre o romance de uma ponta a outra. Nos aspetos formais, este romance, como já escrevi para Jerusalém, possui uma escrita que parece objetiva e analítica, mas que está carregada de subjetividade e simbolismo quanto baste, que é fácil não repararmos numa primeira leitura de qualquer dos romances que compõem esta teralogia. Também a forma dos capítulos é fascinante e peculiar, sendo estes compostos por capítulos principais divididos em sub-capítulos, cada qual com uma frase que espelha a ideia ínsita a cada um deles. 
   Concluindo, portanto, trata-se esta de uma leitura fascinante e intrigante que não pode deixar de ser feita por todos quanto adorem a leitura de uma astuta análise das profundezas mais obscuras da alma humana. 

Citações:
"Todas as frases de simpatia podiam ser vistas, segundo um outro olhar, como frases de ataque. Ao deixar passar o outro à frente, um homem não estava a aceitar ser segundo mas sim a preparar o mapa do terreno para poder controlar visualmente o homem que por instantes se julgava em primeiro lugar. A vantagem de alguém estar à nossa frente, dissera uma vez o pai de Lenz, é estar de costas viradas para nós. Não importa o lugar onde estamos mas o campo de visão e a posição relativa." 
"Frederich apontava para o jardim e para o seu jardineiro, há muito entrado na decadência física, e dizia para os filhos que aquilo era bem o exemplo do que é a natureza nos tempos de paz: até um velho, analfabeto, com pouca força de braços, e incapaz de dizer uma única frase sensata, até um homem desses, um homem secundário, conseguia controlar aquele jardim, aquela outra máquina, aquela máquina verde."
"Todas as estratégias militares diziam o óbvio: apanhar o inimigo de costas, quando muito frente a frente se formos mais poderosos, e de cima, claro - quem está em cima tem vantagem, desde a construção dos castelos altos que todos o sabem - no entanto nenhuma referência era feita a um inimigo que viesse por baixo; o ataque, por baixo não era considerado."


Pontuação: 9.5/10


Gonçalo Martins de Matos

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