sábado, 28 de julho de 2018

"Maresia e Fortuna", de Andreia Ferreira

   Este livro representa a incursão de Andreia Ferreira num género novo, o que tanto pode ser positivo como negativo. Neste caso, felizmente, foi positivo. E muito. A autora aventura-se num novo género sem medo e confiante, e isso nota-se, e bem, aquando da leitura. A piada de ler os livros da autora está no facto de conseguir o feito surpreendente, e, diga-se de passagem, não tão fácil, de conjugar a leitura rápida que é ler literatura light (termo aqui despegado da conotação negativa que se atribui a esse tipo de literatura), mas que de suave e sereno nada tem. 
   O jovem Eduardo vive na Apúlia juntamente com o seu irmão Simão e a sua mãe Adelaide, e leva uma vida serena no seu último verão como menor de idade. Não tem grandes preocupações que o ocupem e pacatamente leva a sua vida. Júlia, uma mulher bela com uma história conturbada, visita a pequena vila piscatória na companhia da sua sobrinha Vanessa, que julga que vem passar férias com a sua tia, quando esta tem os seus propósitos ocultos. É com o cruzamento destas duas histórias paralelas que a ação do livro se inicia. Quase como que in media res, são-nos apresentados os intervenientes principais desta história, para depois nos irem ser desvendados os pormenores. E é assim, de pormenor em pormenor, que vamos descobrindo as vidas destes personagens e as suas preocupações e inquietações. Eduardo preocupa-se que o seu relacionamento com Bianca esteja prestes a terminar e Júlia preocupa-se em desvendar algo no seu passado que acredita ser uma mentira que todos lhe contaram (é-nos apresentada a personalidade errática de Júlia). Assim é a primeira parte da história. A segunda parte é mais reveladora, sendo que irá escrutinar o passado de Júlia e a conexão desta com a família de Eduardo. E assim, de revelação em revelação, avançamos em catadupa a um trágico final. E, não se satisfazendo com o abalo que faz da história toda, a autora termina a história com um último retirar do tapete debaixo dos nossos pés. 
   A história, como disse, encaixa mais no conceito de literatura light. Mas, ao contrário do que este tipo de literatura normalmente nos apresenta, esta narrativa nada tem de segurança, felicidade, paz, sossego e tranquilidade. É uma história trágica, mas contada de uma forma sóbria, sem ser crua, e crua sem ser pobre. As suas descrições não são extensas e o melodramatismo que poderia resultar de uma história deste género não revela a sua face. A sua escrita conduz-nos, e nós deixamos que o faça, pelos sinuosos caminhos que vai desnovelando, pega-nos por uma mão e leva-nos, quase como que em corrida, pelas páginas do livro. A maior qualidade de Andreia Ferreira é a sua análise e construção da psique humana, sendo que os seus personagens estão muito bem construídos e não nos parecem falsos ou forçados. Não senti grande apego ao protagonista, Eduardo, principalmente à medida que avançava a história, mas a sua co-protagonista, Júlia, é a verdadeira personagem trágica. Não podemos deixar de sentir pena pela sua história, mesmo que condenemos as suas ações e os seus pensamentos. Simão é, efetivamente, o personagem com que mais simpatizei, uma boa pessoa a quem a tragédia decidiu derrear e subjugar, injustamente. Os nossos personagens nada mais são que os peões da Fortuna (aqui no sentido de destino) a que alude o título. Por falar no título, a Maresia que é também referenciada no título é omnipresente na narrativa, o Mar é uma presença constante ao longo da história que se desenrola alheia a si (ou talvez não). A Apúlia é uma das praias mais frequentadas pelos habitantes do Distrito de Braga, pelo que este livro possui um traço de familiaridade que nos embala, a nós que crescemos a frequentar aquela praia e a visitar os famosos moinhos apulienses. Conseguimos sentir o cheiro a maresia quando lemos as páginas deste livro. 
   Resta-me recomendar esta leitura. É acessível, sóbria, viciante e, acima de tudo, tem qualidade. Prevejo e desejo o crescimento de Andreia Ferreira, ocupando o seu lugar nas suas surpreendentes histórias de que tanto gostamos.

Citações:
"O poder da maresia, esse odor que trazia ao presente o passado nostálgico e memórias boas, memórias que a enlevavam dentro de si mesma, memórias que não se lembrava de terem ocorrido."
"Não era fã desses temas e mantinha-se cético quanto à purificação das almas pela tragédia. A existirem deuses, terão mais com que se entreter do que brincar com o destino dos homens."
"A tarde recusava-se a dar lugar ao crepúsculo, e foram os ponteiros do relógio a desmembrar a reunião de uma juventude sem problemas, enviando-os de volta aos seus lares."


Pontuação: 7.6/10


Gonçalo Martins de Matos

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