sábado, 20 de março de 2021

"Princípio de Karenina", de Afonso Cruz

    Afonso Cruz é, sem sombra de dúvida, um grande efabulador e uma voz narrativa ímpar no panorama literário português contemporâneo. 
   Neste romance, um pai confessa, em estilo epistolar, a uma filha que condições nas suas vidas os impediram de se encontrar e como a sua vida sempre o forçou a trilhar esse caminho. Filho de um pai severo, amedrontado com o mundo exterior e com o estrangeiro, o narrador sempre cresceu num ambiente hostil à descoberta e à novidade, refém dos estritos parâmetros éticos com que o seu pai desenhava o mundo. Apesar de a mãe do narrador ser uma presença apaziguadora e mais leve, o peso do exemplo paterno tem muita influência no crescimento do narrador. Um peso que não chega a abandoná-lo para o resto da sua vida. Após a morte do seu pai, o narrador decide substitui-lo na sua visão fechada do mundo, adotando muitos dos seus  comportamentos prejudiciais. Sem se aperceber viver rodeado pela novidade e pelo estrangeiro, o narrador vive uma vida estremunhada de casado sem amor e de bloco inamovível. Isto até entrar na sua vida uma estrangeira, a mãe da sua filha, uma vietnamita refugiada em Portugal, fugida da guerra e do terror vividos nessa nação asiática na altura da Guerra Fria. Empurrado para fora da sua toca de conforto e de estreiteza moral, os muros que o narrador construíra são abalados e aos poucos irão desabar. No momento da sua confissão, no final do seu percurso, o narrador reflete sobre a importância da aceitação da imperfeição como componente essencial da perfeição do mundo. Redimido, enfim, prossegue para o seu final arrebatador, em paz com a sua vida e com a estranheza do mundo.
   Composto num estilo próximo do epistolar, os vários capítulos que compõem o romance  correspondem a breves confissões e reflexões na primeira pessoa sobre os acontecimentos passados que levariam até ao momento em que o narrador escrevia. Dividido em cinco partes, que correspondem sensivelmente aos cinco momentos marcantes da sua vida que o levaram a abrir-se para a complexidade do mundo. A imperfeição como parte integrante da perfeição é um dos temas centrais deste romance, materializado desde logo no facto de o narrador ser coxo, devido a uma deformação no seu pá. Contrariamente a muitos livros anteriores do autor, este não vem acompanhado de desenhos da sua autoria ou de utilizações plásticas da sua estrutura. Vem acompanhado de cinco fotografias, que surgem nas divisões entre as partes da narrativa, idênticas à que constitui a capa. O mais curioso é que, juntando todas as fotografias, desde a capa até à última, vemos surgir perante nós uma ideia de movimento, de sequência, o que é um pormenor muito interessante atendendo ao conteúdo da obra. As metáforas e as imagens invocados pelo narrador para enquadrar as suas descobertas e as suas crenças são solidamente aplicados, desde a sua própria deformidade até à medição (na sua infância) da distância por phobos (medos) e não por metros. A metatextualidade da invocação do princípio do romance Anna Karenina para se referir ao paradoxo da felicidade do mundo é também um aspeto muito cativante desta leitura. Também tem destaque a erudição do vernáculo empregue na obra. Um dos aspetos fortes da obra global de Afonso Cruz é sem dúvida o seu desarmante humanismo, que neste romance também marca forte presença: a importância do outro, as relações familiares e afetivas, a amizade são sempre temas fundamentais da sua escrita. 
   Mais uma sólida maravilha literária de um notável humanista

Citações: 
"As que eu mais gostava de trepar eram figueiras. O motivo para isso é muito simples: são as que dão os melhores frutos, aqueles que se diz que é preciso abrir em quatro como se fossem pétalas de uma flor (na verdade, os figos são literalmente flores que crescem para dentro), sorver o interior. É assim que se come um figo: encostar os nossos lábios à sua carne, devorar de uma vez o suco, a matéria, a ferida, era qualquer coisa assim que dizia o manual de instruções que li mais tarde, um poema de D. H. Lawrence."
"A felicidade é um estado especial que só pode existir se incluir no seu seio uma certa dose de infelicidade, por muito paradoxal que possa parecer. Sem desequilíbrio, nada se move. Um círculo está em constante desequilíbrio. É bom para fazer andar os carros. Os quadrados não têm essa possibilidade. Já estão bem assim, sentados à lareira, a sublinhar a sua hombridade, a sua estrutura sólida." 
"Chegamos à conclusão de que as pessoas são más e de que nada vale a pena. Ou talvez cheguemos à conclusão de que tudo vale a pena. Eu acho que as pessoas não são más nem boas, são como tudo o resto. As pessoas são como o vento, como a chuva, como o mar. Por vezes, o mar põe-nos um peixe no prato, outras, entra pela terra adentro e mata aos milhares." 
 
 
Pontuação: 9.5/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos

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