segunda-feira, 8 de março de 2021

"A Melhor Máquina Viva", de José Gardeazabal

   Foi com relativa solidez que José Gardeazabal se introduziu no mundo literário português, com as sua premiada obra poética história do século vinte (obra vencedora do Prémio INCM/Vasco Graça Moura 2015) e, em 2018, com o seu primeiro romance, Meio homem, metade baleia. A melhor máquina viva é o seu segundo romance e o primeiro da Trilogia dos Pares
    Anders Kopf é um aspirante a escritor que decide viver na pobreza durante um ano, de forma a poder escapar a um passado doloroso e, pelo caminho, melhorar a sua literatura. Eeva Wiseman é uma jovem e bela capitalista, herdeira do matadouro da sua família. Ambos são órfãos e ambos conhecem, nos seus passados, a dor. As linhas que unem os dois protagonistas são comuns e paralelas. Kopf recorda o seu passado, com toda a dor e todo o crime, enquanto sobrevive na pobreza do presente, partilhando roubos, injustiças e escassas refeições com a galeria de pobres que o acompanha. Por sua vez, Eeva recorda igualmente o seu passado, enquanto tenta lidar com a presença da dor de então na vida do presente. Pelo meio, pensa na modernidade e no que significa ser-se órfã, capitalista e mulher num mundo cada vez mais modernizado e global. Das peripécias de Kopf, das reflexões de Eeva e do desfiar das linhas do passado, quer de Kopf pelas suas palavras, quer de Eeva, pelas suas questões, resultará uma reflexão conjunta sobre o passado e o presente, sobre o nosso papel real na grande mecânica dos eventos e também sobre o significado da pobreza num século pós-moderno. 
   Expondo desde logo o aspeto menos positivo do romance, o ritmo e a cadência são, a certa altura, entediantes, com as sucessões de frases fragmentárias a não saberem resolver ou simplesmente atrapalhando-se umas às outras. Curiosamente, tal leva a que um dos aspetos fortes deste romance corresponda a um dos seus aspetos menos positivos. Ainda neste ponto, esta arritmia levou a que pairasse, por vezes, uma capa de pedantismo sobre a narrativa, o que também contribuiu negativamente para o romance no todo. Ultrapassadas estas questões, passemos aos aspetos positivos. A linguagem de José Gardeazabal é fragmentária e reflexiva, imperando o fluxo de consciência. Não é exageradamente descritivo nem desmesuradamente cru, equilibra-se num ponto periclitante entre a frieza científica e a emotividade literária (à semelhança de autores como Gonçalo M. Tavares - de quem Gardeazabal é irmão, curiosamente). A reflexividade poética que distingue a poesia de Gardeazabal nota-se na linguagem empregue na narração, nomeadamente no enfoque na influência do século XX nas vidas contemporâneas. Anders e Eeva são símbolos desta temática, um representando o passado e a sua influência constante no presenta, a outra representando a inevitabilidade do avanço do tempo sobre o passado. 
   Trata-se este de uma leitura pós-modernista interessante.
 
 Citações: 
"Pobreza: navio lento, emigração para um continente novo, por motivos materiais. Chora, Kopf!, pensava Kopf, mas as lágrimas não vinham. Pobreza: ânimo, sentimento, modo de vida, com o tempo uma técnica. Aqueles eram os pobres que ficam. As crises iam e vinham, financeiras, mas aqueles não eram pobres financeiros, eram os pobres bíblicos, os constantes. Pobres permanentes."
"Aproveitar cada minuto livre para escrever às escondidas. Porque dizemos cada minuto livre e não cada hora, cada segundo, quando falamos de escrever às escondidas? Kopf queria fazer ouvir a sua voz de autor. Finalizar um livro sobre toda a humanidade, curto, e outro sobre o interminável sofrimento humano, dois livros curtos. Aceitar a contaminação do real, ouvira isto."
"O tempo das fábricas passou, o tempo da moral laica, das mortandades. Passou a fé elétrica na energia, nos melhoramentos, a fé dos matadouros. A televisão, os livros infantis, coloridos, os fins cinematográficos, as viagens e os roubos intercontinentais, todos passaram. Os nossos movimentos resumem-se agora a uma festa violenta onde os melhores animais se aniquilam organizados por tribos, na floresta, ferozmente desanimados pelo desaparecimento dos antigos deuses."


Pontuação: 6.7/10


Gonçalo Martins de Matos

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