sexta-feira, 27 de agosto de 2021

"O Cavaleiro Inexistente", de Italo Calvino

   Italo Calvino é considerado como um dos maiores escritores italianos do século XX. É particularmente conhecido por As Cidades Invisíveis e pela trilogia Os Nossos Antepassados, da qual faz parte este O Cavaleiro Inexistente
   Nos tempos da reconquista cristã, no exército de Carlos Magno combate Agilulfo das Guildivernas e outras, um cavaleiro que possui uma particularidade que o distingue dos demais: a de não existir. Tratando-se de uma armadura vazia, livre de apegos terrenos como o sono ou a fome, Agilulfo passa os seus dias no exército tratando da organização e supervisão de todos os pequenos pormenores que movimentam o exército quando não se encontra em combate. Certo dia chega ao exército de Carlos Magno Rambaldo de Rossilhão, que deseja vingar a morte do seu pai às mãos de Isoarre, emir do exército sarraceno. O jovem Rambaldo depressa se apercebe que a vida e a glória do exército não é nada como tinha imaginado, inclusivamente quando se bate pela primeira vez com o exército inimigo e perde a oportunidade de vingar o seu pai. Então vira-se para Agilulfo, em quem procura aconselhamento. Após uma longa procissão do exército de Carlos Magno pelas terras dos Francos, certa noite, um jovem recém-chegado ao exército, Torrismundo, declara que Agilulfo não é merecedor dos seus títulos e honrarias, uma vez que a virgem que ele declara ter salvo não seria virgem aquando do feito. Então, Agilulfo, juntamente com o seu escudeiro Gurdulú, parte em viagem em busca da virgem Sofrónia, que havia salvo anos antes. Rambaldo parte também, em perseguição de Bradamante, cavaleira destemida do exército imperial, que por sua vez parte enamorada da armadura vazia. Também Torrismundo parte em busca do seu passado, de forma a esclarecer também um pouco as suas origens. Toda a história é narrada por uma freira, que no final confessa também o seu papel na narrativa que redige. 
   O estilo em que se enquadra o romance, como grande parte da obra do autor, é o modernismo, estando neste presentes vários elementos que nos evidenciam essa pertença. Desde logo, apesar de ser narrada uma história tipicamente cavaleiresca, os problemas e as questões suscitadas pelos personagens e pelas situações remetem para problemas bem mais modernos que os existentes na época medieval. A fantasia e a paródia conjugam-se de uma forma inesperada, mas simbiótica, sendo que uma serve a outra na transmissão da mensagem. Os elementos paródicos adicionam uma camada peculiar a toda a obra, podendo ser citados como exemplos os burocratas da Superintendência dos Duelos, da Vingança e dos Atentados à Honra do exército imperial, que tentam atribuir a Rambaldo o equivalente a uma vingança de familiar na organização da batalha, ou o naufrágio de Agilulfo, que resulta em simplesmente este afundar e fazer o resto do caminho a pé, debaixo de água. Agilulfo e Gurdulú constituem uma referência a Dom Quixote e Sancho Pança que adensa o caráter paródico do romance. Outra característica modernista presente no romance é a desconstrução dos conceitos e das instituições tidas como seguras, mas que analisadas pormenorizadamente revelam na verdade cascas vazias de conteúdo ou sentido. Tal é exemplarmente simbolizado pelas sucessivas desilusões de Rambaldo com o mundo, a cavalaria, a guerra e a paixão amorosa. 
   Trata-se de uma leitura muito curiosa e ligeira sem perder no conteúdo. 
 
Citações:
 
"A noite calma era percorrida pelo voo ligeiro de pequenas sombras informes, de asas silenciosas, que se moviam sem direcção definida: os morcegos. O seu mísero corpo incerto, entre o rato e a ave, era, pelo menos, qualquer coisa de tangível e segura, qualquer coisa que podia andar pelo ar de boca aberta engolindo mosquitos, enquanto Agilulfo, com a sua armadura, era atravessado, a cada lufada de vento, pelo voo dos mosquitos e pelos raios da Lua."
"A cavalaria e uma bela coisa, sabe-se, mas os cavaleiros são uma cambada de estúpidos, habituados a cumprir altos feitos, mas por atacado, e quando isso resulta tanto melhor. Na medida do possível procuram adaptar-se a estas regras sacrossantas, que tinham jurado seguir, e como são bem codificadas poupam-lhes o trabalho de pensar."
"Talvez não tivesse sido mal escolhida a minha penitência, pela madre abadessa: por momentos descubro que a pena começa a deslizar sobre a folha como se ela própria tivesse movimento e eu fosse a correr atrás dela. É para a verdade que corremos, a pena e eu, esta verdade que espero venha sempre ao meu encontro, do fundo de uma página branca, e que só poderei alcançar quando, a golpes de pena, conseguir repelir toda a amargura, esta insatisfação, este tédio que estou a expiar, fechada aqui dentro."
 
 
Pontuação: 8/10
 
 
Gonçalo Martins de Matos

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