quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

"A Relíquia", de Eça de Queirós

   Eça de Queirós é um dos grandes vultos da literatura portuguesa, e entrar na sua prosa é sempre esperar uma leitura rica, fluída e bem-humorada. Este A Relíquia não é exceção. Ao título deste romance veio acoplado o subtítulo mais famosos de Eça, que sintetiza o conjunto da sua obra: "Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia".
   A obra começa com uma breve apresentação do narrador e do contexto familiar em que cresceu. Teodorico Raposo, nascido numa família relativamente abastada, herdeira de uma enorme fortuna, vê-se órfão de pai e mãe e obrigado a viver com a sua tia, D. Patrocínio das Neves, uma senhora maldisposta, devota beata e única herdeira da fortuna da família. Crescendo num ambiente familiar rigoroso, não é senão quando chega a Coimbra, para estudar Direito, que Teodorico conhece a liberdade e os prazeres da vida boémia, abandonando a dedicação à religião. No entanto, com a sua tia mantinha a postura de um homem convictamente devoto, tendo em vista a herança da fortuna familiar. Disposto a tudo para cumprir esse objetivo, Teodorico, por sugestão de um amigo da sua tia num dos inúmeros serões que este frequentava, decide encetar numa peregrinação a Jerusalém na altura da Páscoa, prometendo trazer a sua tia uma relíquia da Terra Santa. É assim que parte. Acompanhado de um académico alemão, de sue nome Topsius, Teodorico conhecerá os mistérios e os prazeres do Oriente Médio, conhecendo inclusive em Alexandria uma inglesa chamada Mary, que na hora da partida lhe oferece a sua camisa de noite, num embrulho e com uma nota, para que se recordasse dela. Chegados à Palestina, Teodorico congemina um plano infalível para seduzir finalmente a tia, que consistia em levar-lhe um raminho de um arbusto, afirmando que era a coroa de espinhos. Encontrada a relíquia, embrulha-a com todo o carinho. Uma noite, Teodorico sonha que ele e o seu companheiro de viagem assistem ao processo de condenação de Jesus Cristo, ponto chave da obra que referiremos mais adiante. Findo o sonho, Teodorico e Topsius visitam a Jerusalém do século XIX, com tudo o que tem de santo e devasso. Terminada a peregrinação, Teodorico regressa então a Lisboa, para poder exibir a sua tia a relíquia que lhe trouxera. No entanto, as coisas tomam um caminho imprevisto para o jovem, que terá de saber lidar com a sua nova situação. 
   A obra de Eça, principalmente na fase do realismo crítico, na qual se insere A Relíquia, é uma irónica e crítica análise à sociedade e pensamento portugueses no seu século, sendo que muitos dos vícios que o olho atento do autor ainda hoje se encontram por aí. É com isto em mente que não conseguimos deixar de nos rir ao ler as desventuras de Teodorico, da beatitude da sua tia e da hipocrisia dos padres e conselheiros que a rodeiam. É Teodorico quem nos narra a sua história, emprestando sempre a sua visão e a sua lógica à descrição dos factos que relata. O romance tem como objeto da sua crítica a religião e a religiosidade, quando levadas ao extremo. A tia de Teodorico, D. Patrocínio, é o expoente desta crítica, sendo uma senhora desagradável e constantemente maldisposta, possuindo uma religiosidade tal que o seu oratório maravilhou até Teodorico, o personagem mais desinteressado da religião no romance. É com esta crítica patente que chegamos ao ponto chave do romance, que é o imenso capítulo que o autor dedica ao sonho de Teodorico com o processo de Jesus Cristo, e sua posterior condenação. Este capítulo pega na figura de Jesus e trá-la da sua intocável santidade para a humanidade, apresentando não só Jesus como uma figura não livre de erros, como também desconstruindo o milagre da ressurreição, apresentando-nos uma versão alternativa, e deveras realista, do que se poderá ter passado. Esta desconstrução atinge o seu propósito quando no final Teodorico ouve uma voz que associa a Jesus, mas que não é mais que a sua própria consciência. A obra de Eça também se caracteriza pelo seu brilhante uso do vernáculo, sendo que este romance não é exceção, tendo o autor um domínio total das palavras que emprega e das frases que constrói com elas. 
   Trata-se este romance realista de uma das obras de leitura obrigatória para todos os que apreciam o génio de Eça de Queirós, pelo que não pode deixar de ser vivamente recomendada.

Citações:
"O Jordão, fio de água barrento e peco que se arrasta entre areais, nem pode ser comparado a esse claro e suave Lima que lá em baixo, ao fundo do Mosteiro, banha as raízes dos meus amieiros: e todavia, vede!, estas meigas águas portuguesas não correram jamais entre os joelhos de um Messias, nem jamais as roçaram as asas dos anjos, armados e rutilantes, trazendo do Céu à Terra as ameaças do Altíssimo!
"Aqui e além, no meio de devotos embevecidos, dois doutores disputavam, com as faces assanhadas, sobre temerosos pontos da doutrina: «Pode-se comer um ovo de galinha posto no dia de Sabat? Por que osso da espinha dorsal começa a Ressurreição?» 
"Já não tens Deus por quem se combata, Alpedrinha! nem rei por quem se navegue, Alpedrinha!... Por isso, entre os povos do Oriente, te gastas nas ocupações únicas que comportam a fé, o ideal, o valor dos modernos Lusíadas - descansar encostado às esquinas, ou tristemente carregar fardos alheios..."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

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