quinta-feira, 28 de junho de 2018

"2666", de Roberto Bolaño - Parte 2



A Parte de Fate

   Nesta parte é-nos relatada a existência monótona de Oscar Fate, um jornalista nova-iorquino a quem é dado o trabalho de fazer uma reportagem sobre um combate de boxe a ocorrer no México. Durante esta sua viagem, a sua estadia em Santa Teresa divide-se entre a sua persistente solidão e a sensação de irrealidade que rodeia o ambiente da pequena cidade. As personagens com quem se cruza apenas servem para perpetuar esta sensação de sonho do qual não é possível acordar. Consegue-se dividir a narração num antes e num depois do combate de boxe, sendo que a realidade e irrealidade se distorcem conforme se passa do antes para o depois. Na história, aparece novamente Amalfitano e a sua filha, sendo-nos apresentados outros personagens, destacando Chucho Flores, o jornalista mexicano que recebeu Fate e o introduziu à irrealidade da cidade, e Guadalupe Roncal, jornalista, também mexicana, com a função de escrever sobre os assassinatos das mulheres nessa região de Sonora. 
   A narrativa tem uma construção descendente, ou seja, os factos narrados começam estáveis e "normais" (aquela falsa normalidade que é a rotina), passando lentamente para o caos e a irrealidade, com o combate de boxe que tudo começou a servir de interlúdio entre a estabilidade e o caos. A escrita segue o formato da parte anterior. Mais uma vez, não há conexão direta entre esta e as partes anteriores, mas aos poucos vais sendo desenredada a história principal do romance, principalmente focada, nestas duas últimas partes, nos assassinatos das mulheres no deserto de Sonora. 
   Esta parte obrigou-me a suspender a leitura do livro, pois a leitura não me estava a colar. Apesar desse pequeno facto, a retoma da leitura renovou a minha vontade em descobrir esta história que dizem ser memorável. Mal posso esperar por ler mais.

Citações:
"DINHEIRO. Em poucas palavras, para Seaman o dinheiro era necessário, mas não tão necessário como as pessoas diziam. Pôs-se a falar do que chamou «relativismo económico». Na prisão de Folsom, disse ele, um cigarro equivalia a uma vigésima parte de uma lata pequena de compota de morango. Na prisão de Soledad, pelo contrário, um cigarro equivalia a uma trigésima parte dessa mesma lata de compota de morango. Em Walla-Walla, no entanto, um cigarro equivalia à lata de compota [...]"
"Charly Cruz, como já se disse, era um homem tranquilo, e durante aqueles segundos a sua tranquilidade propriamente dita, a sua disposição calma, não variou, mas aconteceu algo no interior do seu rosto, como se a lente através da qual observava o seu pai, recordava Rosa, já não lhe servisse e começasse, calmamente, a mudá-la, uma operação que durava menos de uma fração de segundo, mas durante a qual, necessariamente, o seu olhar ficava nu ou vazio, de qualquer modo desocupado, pois retirava-se uma lente e colocava-se outra e as duas operações não se podiam fazer ao mesmo tempo [...]"

Pontuação d' A Parte de Fate: 1.1/2



A Parte dos Crimes

   Esta parte da obra é a mais extensa, e tem as suas razões. A narrativa desta parte tem um enredo principal que a atravessa do início ao fim: os assassinatos irresolúveis de mulheres na cidade de Santa Teresa. Pontualmente, existem vários sub-enredos que introduzem outros temas, mas todos eles, como os afluentes de um rio, vão desaguar no enredo principal. É nesses sub-enredos que conhecemos personagens como Juan de Dios Martínez, inspetor da Polícia Judiciária, Epifanio Galindo, agente da polícia de Santa Teresa, Lalo Cura, protegido de Epifanio, Klaus Haas, acusado e preso pelos assassinatos das mulheres, Sérgio González, jornalista da Cidade do México, Florita Almada, uma senhora que afirma ser vidente e que dá a conhecer ao público televisivo os assassinatos que decorrem em Santa Teresa, entre outros. Estes outros são personagens que pontuam a história, abrindo certos caminhos ou fechando outros por onde a história flui. 
   Quanto à estrutura da narrativa, pode ser dividida em duas partes temporais e quatro partes temáticas. Temporalmente, há um antes e um depois de Klaus Haas ser preso, sem julgamento e sem provas concretas que o condenem, ficando nós sem saber realmente se este é culpado ou não, o que coincide com a atenção que os meios de comunicação dão aos assassinatos em Santa Teresa. Tematicamente, temos quatro momentos: as investigações da Judiciária aos assassinatos das mulheres em conjugação com outros delitos ocasionais; a investigação de Juan de Dios ao caso do profanador de igrejas conhecido como o "Penitente" e a sua relação com Elvira Campos, em conjugação com a entrada de Lalo Cura para a polícia ao abrigo de Epifanio; a denúncia de Florita Almada ao caso dos assassinatos de Santa Teresa e a procura de Harry Magaña por Miguel Montes; e a conferência de imprensa de Klaus Haas (já preso) desvendando os verdadeiros culpados dos crimes, a história que a deputada Azucena Esquivel Plata conta a Sérgio González sobre o porquê de se insistir em investigar sobre os assassinatos das mulheres e a perícia que o ex-agente do FBI Albert Kessler faz a convite das autoridades mexicanas relativa aos assassinatos. 
   Esta parte foi a mais interventiva do autor, até agora, pois notava-se a sua vontade de denunciar. Denunciar tudo. A brutalidade contra mulheres que ainda hoje é um problema na América Latina, a incompetência do poder estabelecido em contrariar, causado por uma  apatia conjugada com dinheiro e jogos de poder, a promiscuidade entre política e narcotráfico, um problema atualíssimo, entre outros países da América Latina, no México. Nota-se a sua vontade de denunciar, mas acima de tudo nota-se o embate entre a vontade de mudar a situação com a apatia da sociedade face a isso tudo. O que marca esta parte de início ao fim é a enumeração taxativa que o autor faz dos assassinatos das mulheres, apresentando os elementos-chave de cada caso. Nenhum caso é resolvido pela incompetência (ou aparente incompetência) da polícia e das autoridades. Os únicos que questionam e desejam que se investiguem melhor os casos são Juan de Dios e Lalo Cura, mas são sempre demovidos de o fazer. Todos são culpados, parece gritar esta parte do romance. 
   Esta parte sim, fascinou-me e prendeu-me de uma maneira à sua leitura. Foi uma leitura extensa, mas emergi vencedor. Agora que passei o meio do livro, masi vontade ainda tenho de descobrir esta imensa obra e, acima de tudo, descobrir o nó que irá atar todas estas partes. 

Citações:
"O ataque à igrejas de San Rafael e de San Tadeo teve mais eco na imprensa local do que as mulheres assassinadas nos meses anteriores." em conjunto com "embora o padre da igreja de Santa Catalina lhe tenha sugerido que abrisse bem os olhos, pois o profanador de igrejas e agora assassino não era, a seu ver, a pior mácula de Santa Teresa."
"O senhor interrogar-se-á [...] porque é que o edifício está tão vazio. Sérgio disse-lhe que o mais lógico seria pensar que todos os inspetores estavam na rua, a trabalhar. A esta hora, não, disse Márquez. Então, porquê?, disse Sérgio. Porque hoje é o jogo de futsal entre a equipa da polícia de Santa Teresa e a nossa. [...] o inspetor disse-lhe para ele não tentar encontrar uma explicação lógica para os crimes. Isto é uma merda, esta é a única explicação, disse Márquez."

Pontuação d' A Parte dos Crimes: 1.8/2

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