quinta-feira, 13 de junho de 2024

"Para onde vão os guarda-chuvas", de Afonso Cruz

   "– Com licença – disse Fazal Elahi –, o pedinte tinha um pássaro mágico que, em vez de voar para o céu, voava para dentro das pessoas e, quando voltava para o ombro do dono, cantava uma melodia, ou seria um verso?" abre esta obra monumental de Afonso Cruz, cuja releitura nos recordou da maravilhosa tapeçaria humana que esta obra tece. 
   O pano de fundo é um Médio Oriente mítico, efabulado através do que alguma mentalidade ocidental julga ser esta zona do mundo. O trio de protagonistas, que nos acompanham do início ao fim da narrativa, é composto por Fazal Elahi, modesto vendedor de tapetes cuja maior ambição é passar despercebido, Badini, dervixe mudo que diz poesia com as suas mãos, e Aminah, irmã de Fazal Elahi, que sonha casar um dia. A este trio junta-se uma tapeçaria de personagens únicos, que aparecem e desaparecem das vidas dos nossos protagonistas, como Bibi, mulher de Elahi que é um espírito livre, Salim, filho de Fazal e Bibi, Isa, uma criança cristã, filho adotivo de Fazal Elahi, Nachiketa Mudaliar, um hindu que se converte ao Islão por amor a Aminah, o general Ilia Vassilyevitch Krupin, o mulá Mossud, um padre cristão com um cão chamado Dogma, entre outros coloridos e distintos fios do tapete persa urdido pelas forças imensas e misteriosas que nos assoberbam. 
   Este livro de Afonso Cruz é uma obra de arte visual. Já iremos concretamente à força da narrativa, mas primeiro devemos referir a plasticidade artística que marca este romance. A prosa desenlaça-se acompanhada de fotografias da autoria do próprio Afonso Cruz, que apresentam peças de xadrez representando momentos-chave da história. Outras fotografias esporádicas representam outros objetos próximos da narrativa que se desenrola. Para além destas, um ocasional desenho original de Afonso Cruz acrescenta aos complementos visuais deste livro. Por fim, para encerrar a plasticidade, podemos ver ao longo do livro brincadeiras gráficas do autor no intuito de reforçar a visualidade da sua obra, como três páginas pretas com o texto de cor branca a contar uma perspetiva peculiar de um dos momentos cruciais da trama. Numa outra sequência de páginas, a palavra "desculpe" segue em linha, livre pelas páginas em branco, traçando uma rede de ruas contornando a cidade que acolhe esta narrativa. A história de Fazal Elahi é de uma sensibilidade humanística impecável, pondo em conflito otimismos cautelosos e fatalidades monstruosas, evidenciando a pequenez do humano perante a implacável lógica do transcendente. Acima de tudo, este romance demonstra como a fragilidade consegue ser um lugar de força, mas de uma força particular, oculta da vista e, por isso, aparentemente inexistente. Este romance é de tal forma monumental que cria uma linguagem simbólica própria, um universo de referências e imagens que ganham um significado interno ligeiramente para além dos significados das mesmas na nossa realidade, o que cria um espaço tão dinâmico e rico como a realidade em que nos movemos. As imagens que Afonso Cruz cria com as suas palavras são maravilhosas, cruzando a sua vívida imaginação estética com o seu humanismo poético. A tapeçaria oriental urdida por Afonso Cruz é, acima de tudo, espiritual, revelando os padrões e as ligações que a alma humana conserva profundamente. 

Citações: 

"Depois teve uma vontade urgente de apagar aquilo que via, como os professores apagam os quadros de xisto cheios de números e suras do Alcorão, coisas tão brancas em cima da escuridão. Mas Elahi não conseguia apagar o passado, pois este é mais teimoso do que o giz. Sentia-se ma nuvem, um bocado de mar, separado de si mesmo sem saber o que era nem porque pairava nem porque não chovia o seu corpo pela terra abaixo."

"São as perguntas que nos fazem mexer. As certezas fazem-nos parar. As perguntas são a porta da rua. Quando nos interrogamos, quando duvidamos das nossas paredes, é porque estamos a passar pela porta. O facto de nos espantarmos com o que se passa à nossa volta é sinónimo de vida. Os cemitérios estão cheios de pessoas que não se espantam com nada. A perplexidade é que faz mover o mundo. A criação foi feita através de uma pergunta e não de uma resposta. Se fosse uma resposta, uma certeza, estaríamos todos parados, ancorados na verdade, nos factos. Mas, se evoluímos, é porque andamos a erguer um ponto de interrogação como estandarte. O ponto de interrogação é a verdadeira bandeira do homem. É preciso esquecer os países, as fronteiras, as certezas. O futuro é uma pergunta."

"Dos olhos de Elahi só saíam umas lágrimas. E Elahi perguntava-se como seria possível que a tradução daquilo que se passava dentro dele fossem apenas umas quantas lágrimas. Que coisa tão mal feita, pensava. Com tanto sofrimento, com licença, deveríamos chorar estrelas, para mostrar como tudo o resto é pequenino comparado com tudo o que nos dói."
 
 
Pontuação: 10/10


Gonçalo Martins de Matos