terça-feira, 3 de janeiro de 2023

"A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado", de Gonçalo M. Tavares

   Nos intervalos da minha leitura atual de Lolita, dei por mim a abrir A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, para ir lendo alguns dos seus contos-fragmento. De repente, dei por mim completamente fascinado por este livro que inaugura mais um dos universos de Gonçalo M. Tavares: as Mitologias
   Num universo inominado, sem localização histórica ou temporal, várias personagens peculiares habitam vários espaços e tempos. Estes personagens tanto podem ser pessoas, como animais, como máquinas ou mesmo puros conceitos. Entre estes, acompanhamos principalmente o Homem-do-Mau-Olhado, que não consegue passear pela cidade sem levantar os olhos e saciar a sua curiosidade, uma vez que o seu olhar transmite mau-olhado a quem por ele seja vislumbrado, Ber-Lim, um louco inexpressivo que participa, a troco de remuneração, nas experiências elétricas de Dr. Charcot, o Homem-Mais-Alto, que lidera a Revolução, os Cinco-Meninos, que se perdem numa floresta de Máquinas, ou a Mulher-Ruiva, que consegue iludir a Revolução, mas não escapa de outras latitudes. A outra personagem titular, a Mulher-Sem-Cabeça, e os seus três filhos, fazem uma breve aparição perdidos no Labirinto, ao longo do qual a mãe deles vai deixando atrás de si um rasto de sangue pelo pescoço decapitado. Outros personagens como o Comboio, a Mão-Direita, o Vedor, a Velocidade, a Praça-Quase-Vermelha, a Máquina-de-Voo, o Manicómio-dos-Mecanismos ou o Cinema, são protagonistas dos seus próprios momentos ou histórias, todas estas personagens ambientadas nesse tal universo intemporal e anónimo. 
   A premissa do universo das Mitologias, de Gonçalo M. Tavares, é muito fascinante: pegar em conceitos, problemas e inquietações dos seus séculos de eleição (XX e XXI) e revesti-los de uma roupagem mitológica, coloquial. Esta premissa é fascinante porque traz a visão pós-modernista singular de Tavares ao universo do conto mitológico, do conceito de mitologia. Não existem personagens principais, nem secundárias, e mesmo o conceito de personagem é esbatido nesta incursão tavariana no género mitológico: personagem pode ser uma pessoa, um animal, um objeto, um local ou mesmo um conceito abstrato. O que importa é a sua sinergia relativamente aos elementos e personagens da história que se desenrola. Tavares traz também para o universo mitológico a Máquina, que tem sido secundarizada, ou mesmo esquecida, na história da mitologia. Os elementos epopeicos e alegóricos da mitologia "tradicional" são bem visíveis ao longo deste primeiro livro das Mitologias, seja pela ambiguidade de algumas palavras que figuram em alguns fragmentos, seja quase explicitamente através da atribuição aos conceitos da titularidade da ação. As histórias são marcadamente surrealistas, o que nos lembra amiúde que estamos perante uma visão pós-modernista dos conceitos e dos dogmas da mitologia enquanto género literário. No que toca aos aspetos formais, este livro encontra-se dividido em treze capítulos, cada qual subdividido num número variável de fragmentos. Na página que marca o início do capítulo, estão identificados os fragmentos que deste constam, encontrando-se no verso da mesma página os personagens que protagonizam o capítulo que se inicia.
   Mas o aspeto que mais sobressai, e que mais me cativou, é a intertextualidade entre as histórias ou os personagens deste livro e as histórias e personagens dos variados contos orais ou mitológicos universais. A Mulher-Sem-Cabeça deixa atrás de si um rasto de sangue para depois regressar por onde veio, espelhando uma distorção do método com que Hansel e Gretel marcam o caminho de regresso, assim como do desfiar do fio de Ariadne por Teseu. O Labirinto em que a Mulher-Sem-Cabeça e os seus três filhos se procuram lembra-nos o labirinto de Dédalo, onde Teseu derrotou o Minotauro e regressou graças ao fio de Ariadne. A cruz que o Homem-do-Mau-Olhado carrega, de não poder olhar ninguém, lembra-nos a górgona Medusa, que transformaria em pedra qualquer pessoa que esta mirasse. Mas esta intertextualidade não pára por aqui: a desconstrução do conceito de mitologia ensaiada por Gonçalo M. Tavares vai buscar a acontecimentos e personagens da vida real - o exemplo mais fulgurante é o louco Ber-Lim, cuja identidade foi dividida em dois, como a cidade de Berlim quando foi erigido o infame Muro, ou os Cinco-Meninos, que têm os nomes dos cinco filhos do czar Nicolau II. 
   Uma inauguração fulgurante de mais um universo tavariano que promete ser uma das suas obras mais fascinantes e intrigantes. Sem sombra de dúvida, uma evolução a acompanhar. 
 
Citações:
 
"A mãe sabe que o sangue que vai deixando cair é a única maneira de, mais tarde, saber o caminho de regresso. Tem medo de sangrar demasiado, mas sabe que não pode parar de sangrar. Por vezes levanta a mão direita, leva-a ao que sobrou do pescoço, ao sítio de onde lhe arrancaram a cabeça, e recolhe um pouco de sangue, para depois o atirar de tempos a tempos para o chão, de forma a marcar o percurso. O cheiro do sangue é intenso, não será difícil depois voltar."
 
"Homens, mulheres e crianças avançam em linha recta desde o ponto de partida até ao destino.
Subitamente, de uma carroça saem inúmeros combatentes. É a Revolução, diz alguém. 
O chefe é o mais alto dos homens e proclama: 
«Quem tremer é culpado.» 
Homens e mulheres percebem. Até as crianças percebem. Não podem tremer. 
Mas que fizeram eles? 
Homens, mulheres e crianças estão em linha recta, imóveis, entre o ponto de partida e o destino. 
A Revolução é isto, sussurra alguém."

"O Manicómio-dos-Mecanismos.     
[…]     
- Guardámos aqui as máquinas que avariam sem justificação alguma. Os mecanismos que, mesmo depois de várias tentativas de reparação, não saíram do seu desarranjo.     
Poderá dizer-se que estão aqui os Imprevisíveis, uma espécie maldita. Uma classe de elementos com peste. Devem estar afastados de nós, estes Imprevisíveis. Devem estar afastados, acima de tudo, dos outros mecanismos. Devem ser fechados à chave."


Pontuação: 8.9/10


Gonçalo Martins de Matos

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