segunda-feira, 5 de agosto de 2024

"A Instalação do Medo", de Rui Zink

   "A mulher está nua, o que neste instante a ocupa é mais prático sem roupa – quando tocam à campainha." 
   Dois homens tocam à campainha da protagonista para que possam instalar o medo em sua casa. O Carlos, bem-falante e de aspeto mais civilizado, e o Sousa, de aspeto mais rude, mas supreendentemente eloquente, são os dois funcionários que vêm apresentar o medo enquanto procedem à sua instalação. A mulher que os recebe instruíra ao seu filho, antes de lhes abrir a porta, que permanecesse escondido na casa de banho, tendo sempre em mente essa questão. E é assim, numa tensão crescente, que se encontram os três, ela escutando e eles apresentando o medo, num jogo de dissimulação em que todas as aparências iludem e onde os trejeitos de uns são as suspeitas de outros. 
   Este romance de Rui Zink é uma alegoria sobre a força opressiva do medo enquanto modelo de organização social. Mas também sobre o medo enquanto mecanismo de sobrevivência necessário. E também sobre o medo enquanto tema filosófico. Num registo satírico, mordazmente irónico, o medo é apresentado e vendido por dois peritos em apresentação de produto. O teor da apresentação do medo por parte de Carlos e de Sousa é o de uma conversa animada, em que ambos entram em considerações e reflexões sobre o medo e as suas plúrimas formas. Já a mulher escuta atentamente, lembrando-se volta e meia que tem a criança escondida na casa de banho, e que ela não pode fazer barulho para não ser descoberta. O estilo de escrita é frenético e breve, sendo a narrativa movida por diálogos curtos, principalmente entre os dois técnicos de instalação do medo. As várias formas de concretização do medo são exploradas de uma forma muito pungente pelo autor, que não deixa de ironizar medos como os sentidos pelos mercados ou como o medo do outro, medos muito em voga e do melhor. A ideia da instalação artificial do medo por decreto, "pelo bem da nação", é uma imagem bem conseguida de como sociedades autoritárias e repressivas se instalam em força. O romance encontra-se também pejado de referências, desde o cinema e a literatura até à banda desenhada e aos videojogos, intertextualidade que enriquece o universo interno do romance. Nunca chegamos a perceber como é que se instala o medo, nem com que se parece a máquina que o espalha, nem por que regras se rege a existência do medo, o que gera um dos aspetos mais interessantes e metatextuais do romance, que é o medo do incerto. O mistério encerra o medo, e numa história em que o mistério não se desfaz, também não se desfaz o medo. O final é de tal forma inesperado que qualquer leitor que pense ter percebido o sentido do romance apenas estará a enganar-se a si mesmo, mas num bom sentido, porque é dessa forma que as contracurvas narrativas funcionam melhor. E a reviravolta que nos aguarda no final do romance é executada com mestria por Rui Zink.

Citações: 
 
"– Ou seja, não nos cabe só a nós instalar o medo, é preciso também que haja, da parte dos concidadãos, um estado de disponibilidade mental (eu diria mesmo moral) para aceitar o medo. É como um sinal. Não é só importante que a emissão do sinal seja for-te, é também conveniente que à chegada seja."

"As aparências iludem. Nos filmes, os bons têm sempre cara de bons e os maus cara de maus, é uma alegria. Mas o ator que faz o papel de herói nunca praticou um só ato heróico. Apenas tem cara disso, voz disso, ar disso. Tão só isso disso. Heróis a sério podem parecer sevandijas, e algozes terem o ar mais inocente do mundo. Um “olhar fleumático” não implica fleuma, um “aspeto hirsuto” não indica hirsutez de espírito."

"Em inglês fica tudo mais smart, é um facto, minha senhora. Diga lá se Make my day, punk não é muito mais lapidar que “Anda lá se és forte, ó badameco”." 


Pontuação: 8/10


Gonçalo Martins de Matos

"Bela", de Ana Cristina Silva

   "Bela acabou de se matar" são as lúgubres palavras que abrem esta biografia ficcional sobre Florbela Espanca. 
   Bela, diminutivo de Florbela, é uma mulher complexa, com as suas esperanças e as suas quimeras. Acompanhamos as intensas paixões e os profundos desesperos por que passa Bela, revisitando constantemente a sua infância em busca de uma fonte para os fortes sentimentos antitéticos que marcaram a sua vida. A história que se desenrola é uma versão ficcionada da história da Florbela Espanca real, em que figuram as pessoas que a gravitavam, fosse a sua tenebrosa mãe adotiva, o seu pai ausente, os seus icompreensivos maridos ou o seu confidente irmão, e as suas inquietações ou alegrias nas dinâmicas entre causas e efeitos emocionais. 
   Ana Cristina Silva captura a tragédia da vida de Florbela Espanca de forma muito aprofundada, tanto a nível factual como a nível psicológico. Aliás, é precisamente no retrato psicológico da poeta alentejana que reside o talento narrativo da autora. Com uma investigação sólida aos diários de Florbela Espanca e aos escritos da e sobre a poeta de Vila Viçosa, Ana Cristina Silva consegue transportar uma Florbela que respira e sente dor para as páginas do seu romance. Porém, o romance não foi assim tão memorável para mim. Apesar de se sentir a Bela do romance como real, algumas das indagações sobre o passado e sobre o presente de Florbela ficavam aquém do potencial, principalmente quando a narração se sucedia na terceira pessoa, em que o foco era descritivo, não obstante o enfoque nos retratos psicológicos dos personagens. Os capítulos na primeira pessoa revelam o potencial do romance, sendo reflexões retrospetivas da própria Florbela sobre a sua vida, a sua infância e a sua poesia. Muitas das melhores linhas do romance encontram-se nos capítulos em que é a poeta a narrar-nos as suas inquietações, oferecendo-nos frases belas e profundas. O que não significa que a escrita de Ana Cristina Silva não seja boa, é-o, mas fica muitas vezes no limiar do bom português, quando tem o potencial de ser verdadeiramente impactante. A relevância da infância na construção da nossa psique está bem presente neste romance, em que a autora nos demonstra cruamente que os "pecados dos pais" nos afetam para o resto das nossas vidas. 

Citações: 

"As palavras alinhavam-se automaticamente, escutava o seu ruído inexprimível de cascata ao caírem sobre a folha branca como se marulhassem à tona da água. A sua escrita era demasiado imprecisa para chegar à verdade. E, no entanto, prosseguia, deixando as palavras desembaraçarem-se sozinhas, quase sem precisarem dela."
 
"Reconhecia o poder das suas rimas, o cuidadoso rendilhado das palavras, mas assustava-se com o mundo de mágoa e de vazio que revelavam. Só umas mãos de pedra teriam força para arrancar a dor esculpida sobre o rosto da mulher que escrevia aqueles poemas."
 
"Os meus versos eram a argamassa de uma mente desfeita. Vivia tanto para o meu encontro com a morte como para a poesia. O que fluía, ao redigir um novo poema, era sangue misturado com tinta, que depois percorria os vasos do meu braço direito, como uma espécie de transfusão, antes de atingir o papel."


Pontuação: 7/10


Gonçalo Martins de Matos