quarta-feira, 9 de março de 2016

"A Confissão de Lúcio", de Mário de Sá-Carneiro

   Não são, felizmente, raras as vezes em que leituras das quais não sabemos o que esperar nos surpreendem pela positiva. São, no entanto, mais raras a vezes em que já contamos com algo de bom e nos sai algo de espetacular. Com este A Confissão de Lúcio, confesso-me abismado, assombrado, arrebatado e positivamente surpreendido pela escrita e história deste belíssimo romance. É considerado, justamente, dos melhores romances da literatura portuguesa do século XX, pelo seu rompimento com os cânones tradicionais de escrever em português, principalmente, mas não só. O romance é, verdadeiramente, uma obra de génio, sendo que a sua história e o seu estilo de escrita servem como uma antevisão do que se seguiria na literatura portuguesa da segunda metade do século XX para a frente. Um romance à frente do seu tempo.
   A história é intrigante, e a forma como o narrador a inicia, querendo declarar-se inocente pelo crime pelo qual cumpriu 10 anos, revela já o quão intrigante e espantosa esta será. A história segue a vida de Lúcio, o narrador, vivendo e estudando em Paris, onde se embrenhou nos meios literários da cidade, na altura, efervescente, coração pulsante das artes europeias. O narrador vai relatando o seu quotidiano na companhia de um escultor seu amigo, quando trava conhecimento com Ricardo Loureiro, com quem estabelece uma amizade muito íntima, plena de mútua compreensão. Nesta altura, o narrador relata-nos as inquietações de Loureiro, que este revelava a Lúcio nas suas muitas conversas. Certa altura, Lúcio decide partir para Lisboa, onde frequenta a casa do seu amigo e onde conhece Marta, que supõe ser mulher de Loureiro. Também em Lisboa este passa agradáveis serões na companhia de artistas, mas o seu interesse por Marta vai aumentando, mas também a sua inquietação, alimentada por um misto de mistério e de desassossego, ajudada por acontecimentos pontuais e bizarros. Tudo isto se acumula em catadupa para um final tão arrebatador como misterioso e simplesmente genial. 
   Este romance, digo-o, roça a perfeição. Não é extenso, não deixando de ser profundo, é extremamente culto, não deixando de ser acessível. É Sá-Carneiro no apogeu da sua prosa. É talvez um dos romances mais brilhantes e literariamente satisfatórios que alguma vez li. Não poupo nem nunca pouparei elogios ao brilhantismo de Sá-Carneiro em A Confissão de Lúcio. É tão provido de significado e profundidade que está aberto à interpretação de quem lê. Faz-nos pensar, e eu gosto muito da arte que nos obriga a refletir. O estilo de escrita e a forma de contar a história que Sá-Carneiro emprega neste romance assemelha-se às que surgiriam décadas mais tarde. Li este livro e ocorreu-me à mente uma escrita contemporânea, algo que autores atuais teriam escrito. Qual Edgar Allan Poe, Sá-Carneiro foi um homem à frente do seu tempo, ignorado pelos seus contemporâneos pela sua originalidade invulgar. Mesmo nos dias de hoje, Sá-Carneiro é recordado como poeta ou simplesmente como co-fundador da revista Orpheu, juntamente com Fernando Pessoa, o que, na minha opinião, é ingratidão para com a genialidade da obra que acabei de ler. O meu maior desejo com este texto é que outros leiam este romance e que reconheçam Sá-Carneiro como o genial escritor que ele é.
   Recomendo esta leitura a todos os que desejem ser arrebatados por uma leitura tão surpreendente como brilhante. 

Citações:
"Não importa que me acreditem, mas só digo a verdade        mesmo quando ela é inverosímil."
"Simplesmente, não era essa a expressão do seu rosto. Sabendo tratar-se de um grande artista, os fotógrafos e os pintores ungiram-lhe a fronte numa expressão nimbada que lhe não pertencia. Convém desconfiar sempre dos retratos dos grandes homens..."
"Todo eu agora era dúvidas. Em coisa alguma acreditava. Nem sequer na minha obsessão"


Pontuação: 10/10


Arrebatadoras leituras,
Gonçalo M. Matos

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