sexta-feira, 11 de março de 2016

"Jesus Cristo bebia cerveja", de Afonso Cruz

   Já antes o disse, gosto muito de descobrir qualidade em autores contemporâneos. E descobri qualidade em Afonso Cruz. Jesus Cristo bebia cerveja revelou-se, para mim, uma agradável surpresa, um exceder das expetativas que eu tinha criado quanto ao autor. Ao contrário do que aconteceu com outros, fui criando expetativas à medida que se aproximava a altura de conhecer a escrita de Afonso Cruz que foram mais que correspondidas. Confesso-me rendido a este autor de pensamento profundo e escrita leve. Este livro foi considerado o melhor livro do ano pelos leitores do Público. Afonso Cruz é considerado por muitos críticos como uma das vozes mais poderosas e originais da literatura portuguesa contemporânea e eu concordo. Mais acrescento que é dos melhores autores da Nova Geração literária.
   A história segue o quotidiano de uma aldeia do Alentejo, mais especificamente, de alguns dos seus habitantes, com especial enfoque para Rosa e a sua avó, Antónia. Rosa é uma rapariga feita mulher recentemente e Antónia é uma mulher em final de vida, semi-impotente e enrugada pela vida. Ao longo do romance vamos tendo luz sobre alguns aspetos da vida de Antónia e de Rosa, especificamente do pai e da mãe de Rosa. O romance, segundo a minha perceção, pode ser dividido em duas partes: a primeira parte é composta pela apresentação dos variados personagens que compõem a história, dos seus presentes, passados, das suas inquietações e perversões. É-nos introduzido o professor Borja, um homem de ciência, descrente, o sargento Oliveira, cujo nome "lhe assenta que nem uma árvore", o padre Teves, um homem de Deus, pervertido e um tanto hipócrita (a hipocrisia da Igreja Católica, assim como o seu potencial a ser algo belo, é algo que atravessa o romance), a inglesa que comprou uma aldeia, o pastor Ari, que se apaixona por Rosa, entre outros mais personagens, coloridos ou não. A segunda parte é a narrativa que nos é prometida pela sinopse: os preparativos para que a aldeia da inglesa se transforme em Jerusalém. Nesta parte somos apresentados ao esforço e dedicação das pessoas para que seja feita uma reprodução fiel da Terra Santa. Antónia fica muito feliz por "cumprir" o seu desejo e essa felicidade contagia Rosa. E o romance parte daqui em crescendo até ao desenrolar final, simultaneamente trágico e revelador. No romance vão sendo feitas referências ao título do livro e ao "western" que acompanha este livro, o A Morte não Ouve o Pianista
   A história deste romance é um mimo. Um mimo humanístico. As suas personagens são tão humanas, com as suas complicações, as suas esquisitices e os seus passados complicados ou não. Ao longo da leitura deste romance, Afonso Cruz vai-nos deixando montes e montes de frases profundas e que nos deixam a pensar, de comparações muito engraçadas e de frases muito memoráveis. Inclusive, vai-nos apresentando pensamentos, quer do narrador, quer dos personagens, autênticas pérolas da efabulação literária. 
   Penso que é notório que gostei muito de ler este romance. E agora, tenho vontade de descobrir Afonso Cruz. Faço minhas as palavras de Valter Hugo Mãe: «Não vou descansar até que todos os leitores descubram o Afonso Cruz. Já prometi usar de violência física para obrigar um a um a ler a maravilha que ele escreve, e não estou a brincar.»

Citações:
"Há dois tipos de Deus: o que nasce da barriga vazia e o que nasce da barriga cheia. O primeiro é vazio, terroso, carnal, necessário para criar uma sensação de amparo e justiça num mundo em que não há nada disso. O segundo é um luxo, fruto de elucubrações. Não precisamos dele, mas ainda assim fazemo-lo existir."
"    O povo - diz Fartaria, enquanto limpa os cardos no adro da igreja - é como as solas dos sapatos, serve para pisar, serve para que não nos magoemos ao tocar no pó."
"Uma corda estica até ao seu comprimento, mas pode passar uma vida dobrada sobre si mesma, enrolada para dentro."


Pontuação: 9.8/10


Curiosas leituras,
Gonçalo M. Matos

Sem comentários:

Enviar um comentário