quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

"Terra Sonâmbula", de Mia Couto

   "Naquele lugar, a terra tinha morto a estrada." é a frase que abre o potentíssimo romance de Mia Couto, considerado não só a sua melhor obra, mas um dos doze melhores livros africanos do século XX (atribuição do júri da Feira do Livro de Zimbabué em 1992). 
   Tuahir, um velho, e Muidinga, um jovem, caminham pelos destroços de uma estrada, que os leva às ruínas de um autocarro (no texto, machimbombo, que, no português moçambicano, possui a polissemia de autocarro e carripana), onde ambos encontram guarida. É junto a um dos cadáveres dos passageiros do mesmo autocarro que Muidinga descobre um conjunto de cadernos escritos por Kindzu. A partir desta descoberta, duas narrativas seguem paralelamente, a de Tuahir e Muidinga, cuja constante companhia os protege da inclemência de uma terra em guerra, e a da jornada de Kindzu, que parte da sua terra natal em busca das artes mágicas para proteger a sua família do flagelo que vitima Moçambique. No entanto, os caminhos paralelos de Kindzu e de Tuahir e Muidinga parecem muito mais entrelaçados do que se poderia ter pensado, e os destinos de ambas as demandas estão, na verdade, mais próximos de si e da terra chorosa que os sustenta. 
   Terra Sonâmbula é um romance muito potente. Com a sua característica mestria, Mia Couto relata-nos, numa prosa carregada de poesia, a dor dilacerante de uma terra em autofagia, descrevendo-nos as vidas miseráveis das pessoas comuns face ao flagelo de uma guerra civil. Após a guerra da independência, Moçambique esteve mergulhado numa longa guerra civil, e os efeitos traumáticos que ainda hoje se sentem foram cristalizados no imaginário literário pela mão de Mia Couto, no ano em que se deu oficialmente o fim daquela guerra civil. A atmosfera que circunda o romance é de realismo mágico, com a arcana africana como guia e motivadora. Os laços que unem Tuahir e Muidinga superam a terra rasgada em duas, ambos se unindo por necessidade, mais do que de sobrevivência, de terem um outro em quem depositar os pesos do mundo. A nação moçambicana é um protagonista silencioso, mas presente, sorumbática devido à guerra que a esventra. Se a viagem de Tuahir e Muidinga representa a dureza da realidade, a demanda de Kindzu é onde encontramos o elemento mágico, como reação da própria Moçambique ao que andam a fazer-lhe, mas mais como esperança de tempos menos lacerantes. Muidinga lê a Tuahir os cadernos de Kindzu, e nos trabalhos deste encontram um escape e uma sombra dos seus próprios trabalhos. As duas narrativas que correm em paralelo surgem-nos uma a seguir à outra: um capítulo relata as inquietações de Tuahir e Muidinga, o capítulo seguinte relata as peripécias de Kindzu, entrelaçando as duas como se de uma dupla hélice se tratasse, quase representando como a guerra e a esperança, o duro realismo e a promissora fantasia, constituíram o ADN de um país e de um povo. Os neologismos que são apanágio de Mia Couto encontram algumas das suas melhores concretizações neste romance, abrindo a língua portuguesa a um universo inteiro de significados, algo pelo qual o autor sempre fez por empreender, numa consistente busca por traduzir o intraduzível em palavras. 
   Sem sombra de dúvida, um dos romances obrigatórios da literatura de língua portuguesa, e um dos essenciais de Mia Couto. 


Citações:
 
"A baleia moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam no sol. Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar na praia. A morte nem sucedera e já as facas lhe roubavam pedaços, cada um tentando o mais para si." 

"Fui para o convés, molhado até dentro dos olhos. A chuva redigia suas gordas gotas, hesitantes entre trovoar e tropousar. As nuvens se acotovelavam, sem gentileza. Podiam se tocar, pedirem desculpa e continuar caminho. Enquanto não: brigavam, cuspiam lumes, resmungos celestiais. Será que aprenderam dos homens as impaciências terrestres?"
 
"Vendo bem, o cadáver descuidado no passeio não descondizia com tudo o resto. Simbolizava aquilo que a vila se tinha tornado: uma imensa casa mortuária. Ao meio-dia um grupo de soldados veio remover o corpo. Arrastou-lhe pelos pés, ao longo da estrada. Aquele era o funeral que cabia ao anónimo desvalido: poeirando pela rua, as moscas zunzinando, contratadas carpideiras dos ninguéns."
 
 
Pontuação: 9.9/10 


Gonçalo Martins de Matos

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