sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

" O que Fazem Mulheres", de Camilo Castelo Branco

   "É uma história que faz arrepiar os cabelos". Assim começa mais um vernáculo, criativo, cáustico e inovador romance camiliano. 
   D. Ludovina pretende casar por amor. A sua mãe, D. Angélica, depois de uma admoestação sobre como o amor e o casamento são duas coisas distintas, consegue convencê-la armadilhando o pretendente a confessar a sua falta de interesse real em Ludovina. Assim, Ludovina aceita casar com o pretendente escolhido pelo seu pai, João José Dias. Casados os dois, as peripécias seguintes da vida de casado põem a nu as incongruências dos institutos da sociedade portuguesa oitocentista. Já as personagens do romance prendem-se numa fatalidade evitável, fechados nos lugares-comuns do mal de amor do período romântico que enquadra esta narrativa. A história do romance é esta, assim simplesmente exposta. Mas este romance não é a narrativa que o compõe, mas a crítica mordaz e irónica que Camilo Castelo Branco brilhantemente dispensa sobre tudo, desde os atos supérfluos dos seus personagens aos institutos sociais que emolduram as relações entre eles. 
   O estilo do romance é uma modalidade que era muito praticado na época da sua escrita: o folhetim. Mas este romance em folheto de Camilo apenas assim é como forma de sátira de Castelo Branco ao folhetinismo. O resultado final não é apenas uma maravilhosa sátira do ultrarromantismo de cordel, mas é também um romance muito diferente da sua época, ensaiando uma interatividade com o leitor e uma autorreferência tão consciente que parece um romance pós-modernista, dos que se escreveriam meio século após a morte deste autor, demonstrando mais uma vez a clarividência literária de Camilo Castelo Branco, faceta que não lhe é muito reconhecida fora dos meios literários, infelizmente. O tom do romance é jocoso do início ao fim, não escapando às lunetas perspicazes de Camilo nenhum aspeto da sociedade que o rodeava. Desde a hipocrisia dos virtuosos à mesquinhez dos justos, desde as imposições sociais à mulher até às auto-imposições acéfalas delas entre elas e dos homens entre eles. Apesar de a narrativa ser superficialmente ultrarromântica, em todo o seu fatalismo melodramático, o tom jocoso da crítica cedo nos demonstra que, tal como Eça de Queirós, a trama apenas tem essa função: mover a história. As descrições carregadas de ironia dos personagens ajudam a que nada do que eles fazem ou dizem seja levado a sério, causando o efeito curioso de o leitor revirar os olhos às atuações impulsivas e fatalistas dos protagonistas, contribuindo para tal o tom cáustico com que o autor nos narra as peripécias. O vernáculo de Camilo Castelo Branco continua um dos mais abrangentes da literatura portuguesa. Curiosamente, mesmo os verbetes rebuscados que Camilo utiliza contribuem para o tom irónico geral. Um pormenor muito humorístico que também contribui para o tom irónico do romance é um certo antitabagismo de Camilo, resultando do tabaco a única vítima mortal de um romance que, numa estética ultrarromântica, encerraria com todos os seus protagonistas finados. Muitas passagens ao longo do romance, e um capítulo em concreto, demonstram em Camilo também já uma certa sensibilidade feminista, ao explorar a condição da mulher perante o casamento e a sociedade, e ao dissecar as artimanhas patriarcais para a remeter ao seu lugar submisso. 
   Em termos formais, destaca-se no romance, novamente de forma a parodiar o modelo folhetim, uma série de capítulos adicionais, incluindo um "Capítulo avulso - Para ser colocado onde o leitor quiser", "Cinco páginas que é melhor não se lerem" - um capítulo muito engenhoso - e um posfácio em que Camilo relata uma última peripécia depois da última, parodiando a serialização em que o romance de folhetim muitas vezes se encerrava. Através de notas de rodapé e interpelações diretamente feitas ao leitor (ou à leitora), Camilo cria o tal pré-pós-modernismo patente no romance. Outra marca do pós-modernismo, a metalinguagem, marca presença, nomeadamente através de o narrador constantemente fazer referência ao facto de estar a escrever o romance, e de relembrar constantemente que o seu romance é um folhetim e que por isto ou por aquilo tem defeitos ou qualidades, entre as quais, ironicamente, a sua verosimilhança com a vida real. 
   Em suma, uma paródia humorística do romance ultrarromântico de folhetim feito por um dos expoentes máximos dessa estética literária. Uma leitura camiliana obrigatória para quem deseja conhecer este autor para lá do Amor de Perdição ao qual ainda hoje é teimosamente amarrado. 
 
Citações:
 
"João José Dias devia orçar pelos seus quarenta e cinco anos. Era de estatura menos que meã, adiposa, sem proeminências angulares, essencialmente pançuda, porque João José tinha uma série descendente de panças, desde a papeira cor-de-rosa até às buchas das canelas ventrudas."
 
"Disseram os filósofos e moralistas, uns, grandes santos como S. Paulo, e outros, grandes ateus como Voltaire, que a mulher é um ser exuberante de sensibilidade, e apoucado de raciocínio.
   Daí vem o denegarem-lhes acesso às ciências abstratas, às políticas, aos parlamentos, ao magistério, às regiões intelectivas do maquinismo social, e mandarem-nas cuidar dos filhos, e fiar na roca.
   Se o absurdo vinga, se, por alvitre grosseiro do mais forte, a mulher é um ente inepto para exercitar a razão, com que direito as julgamos e sentenciamos, segundo a razão, sendo as suas culpas demasias de sentimento. 
   A injustiça é flagrante e odiosa.
  Privam-nas de razão para as excluírem das funções que a requerem; sentenciam-nas pela razão, se o sentimento, seu dom essencial, as desvia do piso demarcado por ela."
 
"O leitor já sabe como no teatro se recupera o juízo. Se é mulher a doida, rigorosamente desgrenhada, esfrega os olhos, atira com as madeixas para trás, e dá fricções secas às fontes com frenesi; se, homem, abre a boca, espanta os olhos, soleva o peito em arquejantes haustos, despede o grito agudo obrigado a ambos os sexos, e está pessoa de juízo, capaz de casar, que é quase sempre a pior das doidices em que os autores fazem cair os seus doidos, restaurados para a razão."
 
 
Pontuação: 8.7/10 
 
 
Gonçalo Martins de Matos

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