domingo, 28 de agosto de 2016

"Jesusalém", de Mia Couto

   Ler Mia Couto é estar na presença de uma obra garantidamente bela, poética e intrigante. Este livro, considerado como um dos melhores do autor, não se desvia dessa beleza poética que tão bem caracteriza a sua obra. A escrita de Mia Couto é esteticamente sublime e os temas que aborda são deliciosamente poéticos. Ler uma obra deste autor moçambicano é enriquecedor e um verdadeiro deleite. O autor tem uma forma de escrever tão característica, sendo até a sua mais marcante contribuição para a língua portuguesa a criação de neologismos. Mas nesta obra não se nota essa característica, tirando um ou dois espalhados pelo livro. O que mais marca na leitura de Jesusalém, na minha opinião, é o seu desarmante lirismo. Desarmante porque estamos perante o que parece ser uma utopia, sítio onde não contamos encontrar algo de muito poético. Por essa razão, somos surpreendidos pela doce poesia em prosa que o autor escreve. Muitos são os autores que escrevem muito bem o português, que o levam aos seus limites, mas apenas um punhado destes consegue um tão grande lirismo e significado no que escreve recorrendo a um português simples e acessível.
   A história inicia-se com a apresentação do narrador, Mwanito, "afinador de silêncios", como ele próprio se introduz. A primeira parte do livro é a descrição de como era a vida numa coutada para onde se haviam mudado ele, o seu pai, Silvestre Vitalício, o seu irmão, Ntunzi, e o ajudante do seu pai, o militar Zacaria Kalash. Jesusalém é o nome da coutada onde estes habitam, porque certo dia, após a morte da sua mulher, Dordalma, Silvestre pegara nos seus filhos e mudara-se para um sítio onde não existia tempo nem humanidade, um sítio onde mais ninguém para além deles existia. Após a apresentação das personagens que habitam Jesusalém (a que o narrador denominou de humanidade), são-nos contados vários e pontuais eventos que trazem de volta a humanidade e o tempo a Jesusalém, a narração sempre evoluindo até atingir um ponto sem retorno, onde tudo muda, não podendo voltar ao que era. 
   O lirismo da escrita de Mia Couto é apaixonante. A sua escrita pega-nos às suas páginas, ficamos emocionalmente colados à sua poesia autêntica. É uma autêntica pérola de palavras, uma pedra preciosa de emoções. É assim que descrevo a escrita de Mia Couto, uma jóia. Neste livro não estão presentes os neologismos que caracterizam a obra de Mia Couto, e que lhe valeram o Prémio Camões pela inestimável contribuição para a língua portuguesa, aparte um ou outro pontualmente utilizados (o que me marcou mais foi a palavra "desconsegui"). As alianças improváveis que o autor faz entre um nome e um adjetivo para criar uma ideia de união e desunião simultânea, aliadas ao ocasional neologismo, deixavam-me sempre um sorriso na boca quando os detetava. É uma escrita lírica, poética, preciosa. A língua portuguesa deve muito a Mia Couto, mesmo que não utilizemos os neologismos por ele criados quotidianamente. Quanto mais não seja, deve-lhe o facto de evoluir, de se misturar o português tradicional com o dialeto moçambicano, criando uma língua lusófona, não só de Portugal, mas de todos os países da lusofonia. 
   Em suma, a leitura deste livro é essencial para quem quiser contactar com o que de melhor se escreve em língua portuguesa. É uma obra poética em prosa, para ser apreciada. 

Citações:
"Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou: tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um único silêncio. E todo o silêncio é música em estado de gravidez."
"Deslumbrar, como manda a palavra, deveria ser cegar, retirar a luz. E afinal era agora um ofuscamento que eu pretendia. Essa alucinação que uma vez sentira, eu sabia, era viciante como morfina. O amor é uma morfina. Podia ser comerciado em embalagens sob o nome: Amorfina."
"- Engraçado: eu esperava que Deus viesse a Jesusalém. Afinal, quem vai chegar são estrangeiros privados.
- É assim, o mundo...
- Quem sabe os estrangeiros privados são os novos deuses?
- Quem sabe?"


Pontuação: 10/10


Poéticas leituras,
Gonçalo M. Matos

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