sexta-feira, 5 de agosto de 2016

"Memória de Elefante", de António Lobo Antunes

   Quando decidi ler este livro, estava de pé atrás. De pé atrás porque já o tinha tentado ler antes e fiquei na altura desiludido e desconfiado da escrita de Lobo Antunes. Mas o tempo é algo curioso. É a importância das segundas oportunidades, eu nunca achei nada de especial a obra de Lobo Antunes até decidir dar uma segunda olhadela, fazer uma segunda análise, desta vez com maior maturidade literária. E não fiquei desiludido desta vez. Compreendo agora o porquê de Lobo Antunes ser considerado um dos gigantes da literatura portuguesa contemporânea, a sua influência nos autores que o seguiram é notável. E, sendo este o primeiro romance publicado pelo autor, revelou uma incrível maturidade literária já nessa altura que apenas se desenvolveu. 
   A história deste livro narra o quotidiano aborrecido e desencantado do protagonista, um psiquiatra, que se limita a existir, a ir vivendo, uma vez que se separou da mulher. Verdadeiramente, a história pouco mais é que isto. Em todos os momentos do seu dia, o protagonista pensa na sua vida, em como a sua infância revelava já uma tendência para a "desgraça", como a sua personalidade sempre afastara os que o rodeavam, em como o seu casamento apenas descurou por falta de vontade sua, em como viveu dias terríveis na guerra do ultramar. Estes são os pensamentos-chave que acompanham o protagonista ao longo das suas atividades rotineiras. Movendo-se entre consultas, acompanhamento terapêutico e a negação dos seus problemas, o psiquiatra assim vais vivendo, sempre amargamente, sempre pensando na sua mulher e nas suas filhas, de quem desistiu por pura falta de vontade e cobardia, segundo as suas próprias conclusões.
   A história é narrada na terceira pessoa, o que pode indicar que este romance se trata de uma expiação das questões do próprio Lobo Antunes. Aliás, a presença do autor no romance é bastante explícita. Um psiquiatra recém-divorciado que sempre teve um gosto especial pelas letras é uma descrição que se poderia fazer do autor, tratando-se também da descrição do protagonista. É como se o autor dissesse a si próprio o que fez de mal, porque agiu como agiu, e se punisse pelas falhas que cometeu e poderia muito bem ter evitado. A estrutura deste romance apresenta já uma ou outra característica distintiva da obra de Lobo Antunes, como por exemplo o fluxo de consciência, o uso de uma ou outra palavra estrangeira, um ocasional neologismo, uns indícios de anacoluto, entre outras. O que torna a leitura de Lobo Antunes curiosa e interessante é as comparações e associações de ideias tão curiosas quanto ligeiramente aleatórias, ligando conceitos que aparentemente não se uniam, mas que resultam tão bem, uma vez associados. Já neste romance se observa a escrita labiríntica e densa que marca a obra deste autor.
   Recomendo, portanto, o livro. É uma obra que marca o início de uma renovação no romance português e que inspirou a geração que se seguiu. Apesar de exigir a nossa atenção, é um romance que se lê facilmente e que possui uma escrita acessível. Um livro de introdução ao autor que deve ser lido e apreciado.

Citações:
"O próprio rio vem suspirar no fundo das retretes a sua asma sem grandeza: dobrado o cabo Bojador o mar tornou-se irremediavelmente gordo e manso como os cães das porteiras, a roçarem-nos nos tornozelos a submissão irritante dos lombos de capados."
"num restaurante francês em que o preço dos pratos obrigava a consumir as pastilhas para a azia que a suavidade do filet mignon poupava."
"e o médico pensou com melancolia em como é difícil educar os adultos, tão pouco atentos à importância vital de uma pastilha elástica ou de uma caixa de plasticina, e tão preocupados com a ninharia idiota dos bons modos à mesa"


Pontuação: 8/10


Afortunadas releituras,
Gonçalo M. Matos

Sem comentários:

Enviar um comentário